Por Eduardo Hoornaert
Entre seus 14 e 22 anos, o jovem
Helder Câmara vive no Seminário Diocesano de Fortaleza, Ceará, Brasil. No final
de sua permanência ali, ele elabora uma ‘regra de vida’, ulteriormente
divulgado entre colaboradoras e colaboradores, tanto no Rio de Janeiro como em
Recife. Trata-se de um documento pouco conhecido, mas importante para a
compreensão de sua importância em termos universais, ou seja, para além da
instituição católica. Vai aqui um resumo desse documento, além de alguns
comentários.
1. O texto de uma ‘Regra de
Vida’ aparece pela primeira vez numa das Cartas Circulares que Helder escreve,
principalmente durante a noite, em Roma durante o Concílio Vaticano II,
destinadas à ‘Família Mecejanense’ ou ‘Família de São Joaquim’, ou seja, a um
grupo de mulheres que o auxiliam em seus trabalhos como bispo auxiliar no Rio
de Janeiro. Redigida na noite entre os dias 19 e 20 de outubro de 1963, durante
a primeira sessão do Concílio Vaticano II, o documento comporta 7 páginas e se
inspira provavelmente num texto anterior (Cartas Circulares, Volume 1, Tomo 1,
pp. 210-217). Helder recorre diversas vezes a esse texto anterior. Na página
192 (escrita poucas noites antes), ele escreve: É possível e provável
que envie a vocês um Roteiro de vida, uma Regra, que ando escrevendo na
Vigília; pensando não só em mim, mas em todos nós. É o aproveitamento prático
de toda a visão sobrenatural que a graça nos dá e que a experiência da vida vai
ilustrando. E acrescenta: Reparem como no meio do trabalho
mais intenso, e justamente na medida em que este aumenta e se agrava, é preciso
abrir espaço, descobrir tempo para o essencial. A Regra é um esquema amplo,
fácil de guardar. É a visão que Deus me dá nos dias que passam: visão positiva
e larga, dentro do lema de S. Agostinho: ‘Ama et fac quod vis’ (Ama e faze o
que quiseres). Sua remessa vale como uma confidência, como um retrato
do que desejo ser. E vale, também, como um convite a não deixar que o
acidental tome conta de nós e nos afogue. É incrível como o essencial nos
escapa e como é preciso uma vigilância constante para, de novo e
sempre, segurá-lo com as duas mãos.
Tenho boas razões para afirmar que a
‘Regra de Vida’ foi concebida e delineada no seminário de Fortaleza, por volta
do ano 1930 (a ordenação de Helder ocorre em 1931). Pois seu arcabouço é
construído por meio de um comentário ‘escolástico’, bem no estilo dos
comentários que, na época, estudantes em teologia costumam fazer. Tem as
feições de um comentário a alguma tese da ‘Suma Teológica’, da autoria do
teólogo medieval Tomás de Aquino, em que se lê que o divino se manifesta no
mundo pelo que é ‘unum, verum, pulchrum et bonum’ (uno, vero, bonito e bom).
2. Ora, e aqui reside toda a novidade
do posicionamento do jovem Helder Câmara, o que, na Regra, se entende por unum,
verum, pulchrum et bonum’ é fundamentalmente diferente do que Tomás de Aquino
entende por essas palavras. O jovem seminarista não pratica, pois, um
comentário de Tomás de Aquino, na linha recomendada pelos professores do
Seminário da Prainha. Ele se refere a Tomás para enunciar um pensamento
original. Formalmente, segue o mestre medieval quando escreve: quem
vive sob o signo da unidade, da verdade, do belo e do bem, vive sob o signo de
Deus (Cartas Circulares, Tomo I, p. 210). Na realidade, dá um novo
sentido às teses tomistas. Vejamos isso de mais perto.
- Unidade. Para Tomás de
Aquino, a unidade de Deus fundamenta a unidade da igreja ‘uma, santa,
apostólica e católica’. Helder se movo num universo de significados totalmente
diferente. Para ele, o inimigo da unidade não é a heresia, mas a ‘dispersão’,
um termo que volta quatro vezes nas referidas páginas 210-211. O que ele quer
dizer com isso? Helder sente dentro de si poderosos impulsos de comunicação.
Ele se interessa por tudo que acontece em seu redor, corre o perigo de se
envolver e desenvolver numa liderança que o leve à vaidade e à perda do prumo.
Efetivamente, o seminarista Helder se projeta como líder entre os demais
estudantes. É um seminarista diferente. Em 1929, com a idade de apenas 20 anos,
o seminarista redige textos que são publicados na imprensa diocesana e já
formam um fã-clube em seu entorno. A Regra de Vida mostra que Helder está
consciente dessa sua tendência à publicidade. Ele sabe que sua exuberante
personalidade pode levá-lo a um beco sem saída (o que se comprova em seus
primeiros anos de atuação como sacerdote, entre 1931 e 1936). Ele escreve, na
Regra: podemos acabar o dia esquartejados. Então tentemos salvar a
unidade antes de dormir. Se ela não se recompõe, tenhamos a confiança de dormir
tranquilos e aproveitemos a Santa Missa da manhã seguinte paro o reencontro com
a Santíssima Trindade e, especialmente, com Jesus Cristo (p. 211). Depois
de sua ordenação sacerdotal e durante toda a vida subsequente, a Missa e a
Vigília operam no sentido de unificar a complexa personalidade de Helder, a
recompor uma personalidade naturalmente levada à ‘dispersão’, a interferir nas
mil e uma coisas que acontecem em seu redor.
- Verdade. Para Tomás de
Aquino, a igreja católica é possuidora da ‘verdade’ e tem a missão de difundir
essa verdade pelo mundo. Ele se alegra em constatar que a verdade católica já
compenetra a vida nas cidades, só não penetrou ‘inter gentiles et bruta
animalia’ (entre gentios e animais brutos). O mundo civilizado é cristão. O resto
é pagão. Helder afirma exatamente o contrário: Todos os povos, cada um
a seu modo, louvam o Criador e Pai. Pertence à alma da Igreja e contará com a
misericórdia divina todo aquele que é sincero, pensa estar na verdade e age de
acordo com sua própria consciência.(Quero cultivar) uma atitude
ecumênica, aberta, a todas as criaturas, o cuidado em apresentar sempre a
verdade na caridade e a convicção que Deus revela suas verdades aos humildes e
pequeninos, e as encobre aos orgulhosos (p. 212).
- Beleza. Para Tomás de
Aquino, a beleza natural constitui uma das provas da existência de Deus. É uma
beleza ‘apologética’, a serviço da verdade. Nada disso se percebe na Regra de
Helder Câmara, que afirma que Deus é artista. Onde existe
beleza autêntica, existe Deus. A beleza é um valor em si, independentemente da
adesão à verdade católica, da adoração de Deus. É uma graça divina ser
sensível à beleza. Mesmo quem se julgue ateu e se ache de todo afastado de
qualquer prática religiosa, desde que ame a beleza, está a um palmo de Deus.
Quem recebeu de Deus o dom da beleza física, alegre-se e agradeça. Quem recebeu
de Deus o dom de criar beleza, lembre-se da responsabilidade de participar do
poder criado do próprio Pai. É preciso ter paciência com os artistas. Deus, que
é artista, dá exemplo de usar com eles medida especial. Pôr um pouco de beleza
por toda parte é semear chamadas para Deus (pp. 212-213).
- Bondade. Para Tomás de
Aquino, a igreja tem a missão de espalhar bondade pelo mundo. Por postulado,
ela mesma é boa. Nada disse na Regra de Helder, que concentra sua atenção no
bem que se espalha pela terra sem nenhuma referência à igreja ou à
religião. Por mais distante que da religião se considere, quem pratica
o bem nesta vida terá a surpresa de saber, na outra, que lidou com o próprio
Cristo. A face do mundo será mudada quando houver, entre os homens, doze
corações absolutamente impregnados de amor, incapazes não só de ódio, mas de
qualquer restrição, frieza ou ressentimento. Diante do mal físico, é ingênuo
tentar explicações que não partam do mistério. Não nos façamos de amigos de Jó,
não nos arrisquemos a consolos que mais irritam que consolam. Diante da
maldade, deixemos a Deus o cuidado difícil de julgar. O julgamento dos atos
humanos é impossível para nós. Façamos tudo para não julgar, não guardar
ressentimentos e até pagar com o bem o mal que nos for feito (pp.
213-214)
3. A Regra de Vida está em franco
contraste com a vida diária que o seminarista leva. Obrigado a se confessar uma
vez por semana, praticar diariamente o ‘exame de consciência’, ter um ‘diretor
espiritual’, recitar diariamente na missa o ‘kyrie eleison’ (senhor, tenha
piedade) e o ‘Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo’, Helder desenvolve
aos poucos uma extraordinária capacidade de ‘dançar na corda bamba’, ou seja,
de executar ritos tradicionais enquanto na realidade toca numa outra orquestra.
Pensando bem, a Regra levanta o
seguinte questionamento: como é que esse seminarista, formado dentro do esquema
rígido da ‘fuga ao pecado’ e da ‘procura da salvação’, consegue elaborar um
plano de vida sem se referir a temas expostos até a exaustão em palavras
diariamente repetidas, em tempos de recolhimento e retiro, na repetição de
orientações espirituais? Como é que Helder, em sua Regra, não fala em salvação,
combate ao pecado, penitência, confissão, arrependimento? Como é que nela está
ausente qualquer referência ao tema da salvação, do pecado original, da
penitência, do ‘temor de Deus’, da morte, da culpa, dos torvelinhos na alma
humana, do diabo e do inferno? Como é que sobressai, sem resquícios
‘salvacionistas’, a teologia da graça, da vida, da beleza e da alegria?
4. Efetivamente, a maior
transgressão, em toda a vida de Helder Câmara, está na passagem de uma
‘espiritualidade da salvação’ a uma ‘espiritualidade da vida’. Uma passagem que
constitui um enigma para muitos que entram em contato com ele, desde seus
superiores no Seminário da Prainha até o próprio Papa Paulo VI, que certa vez
perguntou ao Cardeal Paulo Evaristo Arns: ‘o que você acha de Dom Helder?’
O Helder da espiritualidade da vida
passa ileso pelo dogma, sem que seus professores – ao que parece – percebam em
que ponto exato ele é um aluno ‘diferente’. Eles veem em Helder um estudante
particularmente capaz de assimilar o estilo intelectualista, de certo modo
elitista e europeizante do ensino lazarista, um seminarista que invariavelmente
tira as melhores notas, provém de um ambiente mais intelectualizado que a
maioria dos colegas, tem uma inteligência privilegiada, uma personalidade marcante
(ele impressiona vivamente o Padre Reitor, um francês, e consegue estabelecer
com ele laços de amizade), redige textos com grande facilidade e cultiva uma
espiritualidade profunda. Mas esses professores parecem não perceber as fontes
que alimentam o seminarista Helder no íntimo de suas meditações, e que nele
despertam energias espirituais da mais pura autenticidade evangélica. Tudo
isso, ao que parece, se passa em silêncio, sem alarde, com sutileza, envolto na
gentileza de uma personalidade sempre agradável, sempre comunicativa, nunca
agressiva. O seminarista Helder pratica uma leitura subversiva de Tomás e da
tradição tomista sem que seus professores o percebam. Uma leitura divergente,
baseada numa tradição antiga, sempre minoritária e não realçada no ensino do
seminário. Será que os superiores do Seminário perceberam o que se passava com
o irrequieto, inteligente e talentoso seminarista que ficou entre eles ao longo
de oito anos?
5. Como chamar essa tradição
minoritária, que representa, mais que qualquer outra, a fidelidade ao
evangelho, no sentido original do termo? É a tradição ‘da graça e da vida’, que
ao longo dos séculos faz contraponto à tradição ‘da redenção’, ‘da salvação da
alma’, do pecado, da penitência, do medo do inferno, da ansiedade, da
obediência e da neurose religiosa. Conseguindo perceber a diferença, Helder é
capaz de relativizar a pretensa sabedoria de um modo de pensar o cristianismo,
que está na base do ensino seminarístico, mas que vive numa ‘ilusão que
autoriza os cristãos a não se questionar acerca de sua fidelidade ao
Evangelho’, como escreve o dominicano francês Dominique Collin em seu livro ‘Le
Chistianisme n’existe pas encore’ (2018, veja Internet). Um cristianismo que
bota Jesus no bolso e se julga autorizado de falar em seu nome. Um cristianismo
preocupado com seu futuro, mas quase incapaz de questionar sua pretensão em
representar o evangelho, pouco inclinado a reaprender a falar do evangelho e de
praticar o evangelho.
Eis o que já está por trás da Regra
de Vida do seminarista Helder Câmara, embora não de modo explícito. Sem dar a
impressão, Helder relativiza a teologia do grande mestre medieval Tomás de
Aquino, pedra angular da teologia ensinada nos seminários católicos de seu
tempo e a situa em tempos passados, quando a Europa ainda vivia na ilusão de
ser ‘evangelizada’ e ‘evangelizadora’. É como se ele dissesse: fica fácil falar
de uma igreja sinal de ‘unidade, verdade, beleza e bondade’, quando se vive na
proteção dos claustros, nos recintos acadêmicos ou atrás dos muros de um
seminário. Mas quando se bota o nariz fora, na rua, a impressão esvaece. O
jovem Helder, de 1930, entende que o evangelho não é a mensagem fundante de uma
tradição religiosa particular, com suas normas, seus dogmas e ritos. É uma
palavra dirigida a cada pessoa humana e que diz: é possível viver de outro
modo. É possível combater a banalização da vida (item ‘unidade’), abraçar a
todos os seres humanos (item ‘verdade’), viver a beleza de existir (item
‘beleza’), viver impregnado de amor (item ‘bondade’). Enfim, a Regra de Vida
não entra numa linha de continuidade do ensino seminarístico, mas constitui
algo inteiramente novo.
6. O que sustenta a observância dessa
Regra de Vida ao longo de mais de cinquenta anos (de 1930 a 1984, ano de
aposentadoria de Helder) é o fato que, desde sua ordenação sacerdotal em 1931 e
pelos cinquenta anos seguidos, cada noite o despertador, ao lado da cama de
Helder, toca às duas da madrugada. Ali ele se levanta para meditar e escrever,
no silêncio da noite, por uma ou até duas horas. É a ‘vigília’. Desse modo,
como ele mesmo explicou certa vez, ele se ‘unifica’. Escreve Zildo Rocha, que
viveu em contato direto com Helder Câmara entre 1964 e 1970: ‘É impressionante
como naquelas vigílias, no silêncio das madrugadas, ele convive com rosas,
formigas, pássaros ou jumentinhos, privilegiando quase sempre a porção frágil,
delicada e volátil dos seres da natureza, como se, até nesse campo do mundo
vegetal e animal, lhe fosse conatural e espontânea a opção preferencial pelos
mais fracos e pequeninos’ (Rocha, Zildo, A Dimensão sócio-política da religião
na vida e na obra de Dom Helder Câmara, Palestra na Câmara Municipal de Olinda
em Sessão póstuma de Homenagem a Dom Helder e publicada na terceira edição de
‘Helder, o Dom: uma vida que marcou os rumos da Igreja no Brasil’, Vozes,
Petrópolis, 1999). E continua: ‘Impossível falar na espiritualidade de Dom
Helder, sem fazer menção a essa sua prática espiritual’. Na biografia de
Piletti & Praxedes (Dom Hélder Câmara, Entre o Poder e a Profecia, Atica,
São Paulo, 1997), p. 145, se escreve: ‘As vigílias de Helder Câmara não podem
ser tidas como uma dessas legendas, de procedência histórica não comprovada,
que se vão gestando no imaginário popular. Estamos diante de um fato
consistente, constantemente referido nos próprios escritos do Dom e de que dá
testemunho a sua enorme produção literária em cartas, poemas-meditação,
discursos e projetos. O próprio Dom Helder, em março de 1964,
confidencia: Que seria de mim sem a vigília?. E, de novo, na vigília
pascal de 1970: O que seria de mim se cada madrugada, a unidade não
fosse refeita e refeita em Cristo?. Na vigília, Helder entra em uma
cela interior, onde o céu toca na terra e onde ele escapa aos
limites do tempo e do espaço. Ali não há pressa, mesmo quando ele tomba de sono
ou de cansaço. Ali ele se sente companheiro e irmão dos anjos,
especialmente de José, seu anjo da guarda, dos santos, particularmente do santo
do dia, ou ainda das almas do purgatório ou ainda do Papa João XXIII, a quem
ele atribui igualmente a prática de vigílias noturnas: O Papa João agia
por inspiração direta de Deus. Era sobretudo nas vigílias que lhe vinham as
inspirações de Deus...O Papa João é meu companheiro de Vigília (Cartas
Circulares, Primeiro Volume, Primeiro Tomo, 365) A vigília provoca, no espírito
de Helder Câmara, uma mútua fecundação entre o dia (quando ele está ‘em ação’)
e a noite (quando ele se ‘unifica’). Como resultado, a ideia de Deus penetra em
tudo que ele faz e diz. Aqui entra um fator psico-biológico que não sei
analisar. Não sei como o fator ‘atividade’ permeava o fator ‘contemplação’, nem
sei explicar como o organismo de Helder Câmara reagiu diante da interrupção do
sono a cada noite e como se operou em seu corpo a mudança de ritmo entre sono e
vida acordada. Só sei que Helder comia pouco, viveu sempre num estado de
tranquilidade e segurança, em qualquer circunstância e diante de qualquer tipo
de pressão, pelo menos desde 1964 (o período entre 1931 e 1964 necessita de
avaliação própria). Enfim, entender Helder Câmara não é possível sem tomar em
conta a concatenação, desde a vida no seminário, entre Regra de Vida e missa
diária, e, depois da ordenação, entre os três fatores: Regra, missa e vigília
noturna.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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