Por Marcelo Barros
Em diversos
países da América Latina, o governo imperial dos Estados Unidos continua a
financiar os golpes nossos de cada dia. O Comitê de Direitos Humanos da ONU
acaba de reconhecer Lula como prisioneiro político e exige que a justiça
brasileira respeite seus direitos sociais e políticos. No Brasil, uma campanha
eleitoral confusa e pouco representativa do que o povo deseja tenta mascarar a
realidade.
Tudo isso nos
faz lembrar que, há 50 anos, o Brasil e vários países do continente sofriam
ditaduras militares. Como ainda hoje, a maioria dos governantes, ao invés de
regular as relações dos diversos grupos sociais, tinha como tarefa controlar os
pobres e garantir a manutenção da escandalosa desigualdade social.
A novidade foi
que naquele 68, em vários lugares do mundo,
explodiam revoltas e movimentos de jovens. Na América Latina, os bispos
católicos do continente se reuniram na cidade de Medelllín (Colômbia) para a
sua segunda conferência geral. A conferência
de Medellín aconteceu há exatamente 50 anos, de 24 de agosto a 06 de setembro
de 1968. Teve como tema “A missão da
Igreja no processo de transformação social e política da América Latina”. Pela
primeira vez, um papa atravessou o Atlântico e Paulo VI abriu a conferência de
Medellín. Na época, Dom Helder Camara e depois Dom Pedro Casaldáliga afirmaram:
“Para a América Latina, Medellín foi um
verdadeiro Pentecostes”. Significou o nascimento de uma Igreja Católica com
cara latino-americana. O próprio tema deixava claro que a missão da Igreja não
é apenas religiosa, nem principalmente cultual. Em Medellín, os bispos nos
ensinaram que a missão da Igreja é testemunhar e ensaiar no mundo o reino de
Deus, isso é, o projeto divino de justiça e de paz. Entre muitas afirmações e
propostas importantes, em Medellín, os bispos concluíram que a Igreja deve ser pobre,
missionária e pascal, ou seja, como diz o papa Francisco “em saída”. Sua missão é servir como libertadora “de toda a humanidade e de cada ser humano
por inteiro” (Cf. Conclusões de Medellin, 5, 15).
A partir de
Medellín, surgiu no continente um novo modo de ser Igreja que se expressou nas
comunidades eclesiais de base, nos grupos bíblicos, nas pastorais sociais e na
inserção de uma parte das Igrejas na caminhada da libertação. De 1968 para cá,
o mundo mudou muito. O Império norte-americano conseguiu invadir vários países.
Ele provocou várias guerras, vendeu e usou suas armas. Matou uma boa quantidade
de pobres, africanos, asiáticos e latino-americanos, considerados descartáveis.
Quanto à
Igreja Católica, ela sobrevive a várias crises e escândalos de diversos tipos.
No entanto, a traição mais séria dos eclesiásticos mais tradicionais não é em
matéria de moral sexual. É questão de humanidade. O que está vindo à tona como
omissão, ou conivência culpável de autoridades religiosas atesta uma insensibilidade
em relação a vítimas inocentes. No entanto, revela um desvio mais profundo e
radical: o afastamento do caminho do evangelho de Jesus. Esse não se interessou
em fazer uma religião ou em deixar no mundo uma estrutura de poder que se
auto-protegeria. Conforme o evangelho de Lucas, seu projeto, proclamado, em seu
primeiro discurso público foi: “O sopro
(Espírito) de Deus veio sobre mim e me enviou para trazer a libertação dos
oprimidos, curar os doentes e proclamar
um ano de graça (jubileu) de libertação para todos” (Lc 4, 16- 21).
No decorrer da
história, os eclesiásticos reinterpretaram esse texto em um sentido
espiritualizador. A cura se refere aos problemas interiores e a libertação é a salvação
da alma. Aqui, o mundo pode continuar dominado pelos senhores do dinheiro e do
poder. Infelizmente, ainda há eclesiásticos que, enquanto podem, lhes são muito
próximos. Em séculos passados, muitos bispos e padres davam assistência
espiritual aos senhores de escravos e, de vez em quando, eles mesmos recebiam
alguns escravos como presentes. Essa forma de interpretar a fé e a
espiritualidade se mantém muito forte seja no Congresso Nacional, onde está bem
representada pela chamada “bancada evangélica”, como pelo comércio religioso,
que cada dia é mais lucrativo. Agora, através dos 50 anos da conferência de
Medellín e das crises pelas quais passa a Igreja, os cristãos e cristãs são
chamadas a “ouvir o que o Espírito diz,
hoje, às Igrejas” e “voltar ao seu
primeiro amor” (Ap 2, 5- 7). Na Bíblia, o primeiro amor do povo foi o
Êxodo, onde conheceu intimamente a Deus, em meio à caminhada da libertação. É
preciso voltar a essa mística da caminhada libertadora.
Quando a
Igreja passa a olhar apenas para si mesma e se preocupa apenas com suas
atividades internas, se torna idólatra. Deixa de ser sinal de Jesus Cristo e
apresenta uma imagem mesquinha e indigna de Deus. Ainda bem que, nas periferias,
com ou sem apoio oficial, as comunidades e pastorais proféticas continuam
obedecendo a voz do Espírito que sopra onde quer. Como disse Paulo, “onde houver
espírito de liberdade, aí está o Espírito de Deus” (2 Cor 3, 17).
Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26
livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed.
Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.
Nenhum comentário:
Postar um comentário