por Frei Betto
Outrora eu nutria profunda
veneração aos santos. Homens e mulheres capazes de tantos milagres só poderiam
ter existido em outras épocas. Supunha que eu jamais conheceria alguém como
aqueles seres sobrenaturais, isentos de preocupações triviais e simples
carências humanas.
Ao contemplar suas
imagens nas igrejas, suas figuras em ilustrações e santinhos, nada daquilo me
parecia humano; eram seres privilegiados até na beleza física, no olhar
beatífico, envolvidos por uma auréola de pureza que jamais eu reconheceria em
qualquer dos meus contemporâneos.
Com o tempo, deixei os santos
nos altares e nas estampas, e fui procurar algo mais humano, mais condizente
com a realidade trágica e arriscada da nossa condição terrestre.
Haveria um ser que sentisse raiva e
medo, desafiasse os inimigos, chorasse a morte dos amigos, desrespeitasse a
lei, rompesse a tradição, sofresse angústia e fome? Alguém repelido como um
portador de hanseníase, perseguido como um bandido, caluniado como uma
mulher adúltera, e que andasse foragido como um criminoso e acabasse morto como
um pária, da maneira mais ignominiosa? E haveria neste mesmo ser
humano a plenitude do amor de Deus?
Perdi os santos do céu, mas
encontrei este homem na Terra. Ele não tinha a delicadeza nem a beleza dos
santos; não provocava a admiração dos reis, nem suscitava a compaixão dos
magistrados. Era tão sem atrativos como os bêbados da madrugada, as prostitutas
das ruas infectas, os mendigos estirados nas calçadas, os loucos molhados pela
própria baba, os presos que nos fitam entre grades, os hansenianos de mãos e
pés atrofiados.
Este homem identificava-se com
essa escória, fazia-se um deles, entregava-se por eles, e a quem desse um
banquete, sugeria não convidar a família nem os vizinhos ricos. Convidasse os
pobres, os estropiados, os coxos e os cegos, para se sentir feliz porque esses
não têm com que lhe retribuir (Lucas 14, 12-14).
Ainda assim houve quem acreditasse
neste homem. Houve quem visse, naquele pregador ambulante, a plenitude do amor
de Deus. Não foram muitos, nem eram ricos e poderosos. Foram os pobres, os
humildes, os que têm fome de justiça e constroem a paz.
Houve também quem visse nele
um perigo a ser contido: “Se o deixamos continuar assim, todos crerão nele, e
virão as tropas estrangeiras e destruirão nosso lugar santo e nossa nação.
Convém que morra um homem por todo o povo, antes que o povo todo pereça. A
partir desse dia resolveram matá-lo” (João 11, 45-53).
Ele fugiu. “Não andava em público” (João 11,
54). Passou à vida clandestina. “Os chefes dos sacerdotes e os fariseus tinham
dado ordem para que se alguém soubesse onde ele estava, o denunciasse, afim de
que pudesse ser preso” (João 11, 56).
De fato, ele “foi torturado e
suportou, não abriu a boca. Por um iníquo julgamento foi condenado, sem que
ninguém pensasse em defendê-lo. Deram-lhe sepultura ao lado de facínoras e, ao
morrer, achava-se entre bandidos, se bem que não tenha cometido nenhuma
injustiça e jamais dito uma mentira” (Isaías 53, 7-9).
Assassinado por dois poderes
políticos, este homem ressuscitou. Era o próprio Deus entre nós. Mas quem
o reconheceria sob tanta humilhação e sofrimento? “Sendo ele de condição
divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si
mesmo, assumindo a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens. Por
isso Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo nome, para que ao
nome de Jesus se dobre todo joelho no céu, na Terra e nos infernos. E toda
língua proclame, para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é o Senhor” (Filipenses 2,
6-11).
Hoje, muitos que almejam o
poder se esforçam por transformar este homem em cabo eleitoral. Em nome de
Jesus, eles criaram um deus à sua imagem e semelhança... E descartam de seus
projetos e programas os direitos dos pobres e excluídos como prioridade.
Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre
outros livros.
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