por Eduardo Hoornaert
Certa
vez, Helder Câmara me chamou à parte e me disse: ‘Não esqueça que já me deixei
seduzir pelo fascismo’. Essa franca confissão, por parte do próprio bispo,
acerca de um período de sua vida (entre 1931 e 1938) faz com que eu possa aqui
abordar o tema espinhoso de sua ‘ilusão fascista’ sem medo de depreciar sua
memória.
1. Em
agosto 1931, Helder Câmara é ordenado sacerdote. O único, entre os
ordenados, a não ser designado para trabalhar em paróquia. (Pelo que me consta,
ele nunca trabalhou em paróquia, ao longo da vida). Isso quer dizer
que seus superiores nele enxergam uma inclinação por um tipo de
apostolado sacerdotal que não se circunscreva ao âmbito estritamente religioso,
mas incida diretamente sobre as estruturas da sociedade.
No ano
anterior, dois novos líderes aparecem no cenário político brasileiro: Getúlio
Vargas (1930-1945) e Sebastião Leme (1930-1942), respectivamente na qualidade
de Presidente da República e de Cardeal Arcebispo no Rio de Janeiro, Capital da
República. O primeiro é herdeiro da ideologia da ‘República Velha’ de 1889,
baseada na ideia da ‘separação dos poderes’ e dos primeiros passos,
cambaleantes, no sentido de uma governança leiga. O segundo é um líder
religioso convencido, representante de uma sólida estrutura de domínio sobre a
sociedade, testada pelos séculos. Os dois ficam, ao longo de doze anos, se
espreitando, desconfiam um do outro, se aproximam e se distanciam, num jogo de
poder que não dispensa espionagens e inconfidências, como demonstram os biógrafos.
Mas o Cardeal tem uma carta na manga que o Presidente não tem: ele é capaz de
botar multidões na rua. Assim, por exemplo, organiza, em final de 1931, uma
grande procissão que percorre as principais ruas da capital para acolher a
imagem de Nossa Senhora Aparecida, vinda do interior de São Paulo para receber
sua ‘consagração’ na Capital da República. Um enorme sucesso. Mais de um milhão
de pessoas reunidas em torno da imagem da Santa. O Cardeal não perde a
oportunidade para, na cerimônia final, no palanque, desafiar o líder do
governo, Ele diz: ‘ou o Estado reconhece o Deus do povo, ou o povo não
reconhecerá o Estado’. E ainda, no mesmo tom: ‘o nome de Deus está
cristalizado na alma do povo brasileira’, deixando implícito o seguinte
pensamento: quem controla a alma do povo somos nós, os bispos. O Cardeal, logo
depois dessa fala, lança o projeto de uma ‘Liga Eleitoral Católica’ (LEC), uma
organização suprapartidária com o intuito de promover e defender os ‘valores
católicos’ na sociedade, ou seja, de combater o ‘laicismo’ da República e
reinstalar a tradicional ‘obediência’ católica no país, o que significa,
concretamente, um ensino controlado direta ou indiretamente pela igreja, aulas
de catecismo disfarçadas de aulas de religião, nas escolas públicas, a criação
de universidades católicas (as PUCs: Pontifícios Universidades Católicas), de
círculos operários, de uma legislação pública de acordo com a moral católica,
da preservação dos bons costumes, etc.
2.
Nisso se infiltra, inesperada e inadvertidamente, a ideia fascista. Nada, nas
tendências políticas brasileiras do século XIX, sinaliza seu aparecimento,
embora seus ditames encontrem ressonância na longa tradição católica. Penso que
se pode dizer que a sedução fascista, num país como o Brasil, só se compreende
a partir dessa ressonância ‘de longa duração’, ou seja, da concordância em
determinados paradigmas cultivados durante longos séculos no seio da igreja
católica.
Mesmo
assim, a introdução do fascismo no Brasil tem algumas particularidades que
merecem ser destacadas. O talentoso escritor Plínio Salgado (1895-1975), que é
ao mesmo tempo político, jornalista, teólogo e filósofo, de tendências
messiânicas e forte desejo de aparecer em cena pública brasileira, mas cheio de
dúvidas quanto ao seu engajamento concreto, viaja à Itália e lá se encontra com
o líder fascista Benito Mussolini. Escreve na oportunidade: ‘senti um fogo
sagrado queimar em minha alma’. Ele se convence que a via política, enveredada
com tanto sucesso na Alemanha com Hitler e na Itália com Mussolini, constitui
uma ‘ponte para o futuro’ no Brasil. Resolve criar a Ação Integralista
Brasileira (AIB). Na oportunidade, ele não é o único para elogiar a
personalidade de Mussolini, pois em 1926 o próprio Papa Pio XI elogia
Mussolini, um homem ‘que governa com tanta energia o destino do país, que
pratica a justiça’ etc. (veja Google, verbete Pio XI). Enfim, nas palavras do
papa, Mussolini aparece como o ‘salvador da pátria italiana’.
Será
que Plínio Salgado, em 1932, se considera ‘salvador da pátria brasileira’? A
originalidade de sua experiência peculiar de fascismo consiste no fato de
ele não se basear unicamente nos focos de fascismo já existentes entre
imigrantes alemães e italianos no Sul do Brasil, mas no fato de englobar, não
sem originalidade e criatividade artística, símbolos de forte apelo ao
imaginário brasileiro em geral, como o ‘retorno à autenticidade indígena’.
Nesse sentido, ele transforma o grito ‘Anaué’ (‘presente’), da língua tupi, em
palavra de ordem nas reuniões de militantes fascistas pelo Brasil afora.
Outrossim, a viagem à Europa lhe ensinou a arte de apelar para simbolismos e
gestos marcantes, que na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussolini têm grande
sucesso entre a juventude, de alimentar o gosto por paradas espetaculares,
insistir no apelo moralista, aprimorar a educação física, usar uniformes (as
‘camisas verdes’) e braçadeiras pretas com a letra grega ‘sigma’ (símbolo do
integralismo). Muitos jovens ingressam por gosto pela disciplina militar, por
paradas nas ruas, por ostentar uniformes, participar de eventos esportivos e
acampamentos.
Em seu
livro ‘A anatomia do Fascismo’ (Paz & Terra, São Paulo, 2007), o
historiador norte-americano Robert Paxtin escreve que ‘na América Latina, o
movimento mais aproximado com o fascismo europeu foi a Ação Integralista
Brasileira (AIB). Os integralistas superaram de muito os clubes nazistas e
fascistas, espalhados entre imigrantes alemães e italianos pelo Brasil. Salgado
conseguiu com sucesso aliar um imaginário brasileiro histórico. Em 1934, o
integralismo brasileiro chegou ao pique de 180.000 membros, alguns deles
proeminentes em profissões liberais, empresariais e militares’. Com habilidade,
Plínio Salgado introduz na AIB aspectos marcadamente fascistas, como ditadura,
nacionalismo, protecionismo, corporativismo, anti-semitismo. Ele alimenta um
forte apelo religioso e nisso suscita interesse na LEC, onde atuam figuras
emblemáticas de um novo catolicismo leigo, encorajado pelo Cardeal Leme, como
Jackson de Figueiredo (fundador do Centro Dom Vital, no Rio de Janeiro), Alceu
de Amoroso Lima (com quem Helder Câmara mantém correspondência desde os tempos
do seminário), Plínio Correia de Oliveira, uma liderança proveniente das
Congregações Marianas de São Paulo, que em 1932 se torna o deputado federal
mais votado em São Paulo e nos anos 1960 fundará o movimento ‘Família, Tradição
e Propriedade’ (TFP), e outros.
3.
Antes de continuar a narrativa, e para ser justo com a memória de Helder
Câmara, há de se fazer aqui uma observação importante. Não se pode projetar
para os anos 1930 no Brasil a ideia do fascismo que veio a predominar, no mundo
inteiro, após os terríveis anos 1940-1945, ou seja, após a Segunda Guerra
Mundial. Seria interpretar dados históricos a partir de contextos posteriores,
ou seja, praticar um anacronismo. Em 1930, o fascismo se apresenta como um
movimento que, ao combater ao mesmo tempo o comunismo e o liberalismo burguês,
ganha a simpatia de muitos. Um movimento de redenção moral, atrativo à
juventude, mesmo sendo de cunho autoritário. Quando, no ano 1931, Helder
aparece em cena política, a ‘sedução fascista’ é compartilhada pela maioria dos
agentes católicos do país, desde o Cardeal Leme no Rio de Janeiro até leigos
comprometidos, em paróquias situadas nos mais afastados rincões do país. Há de
se considerar também, para ser justo com a memória de Helder Câmara, que o
jovem padre faz, desde sua aparição em cena pública, uma decidida opção pela
educação e nisso persevera a vida toda. Ao longo de muitos anos, até sua
nomeação de bispo auxiliar no Rio de Janeiro, ele permanece atuando em área
educacional, seja diretamente como professor e conferencista, seja
indiretamente no aparelho burocrático ligado ao Ministério da Educação na
Capital da República.
4.
Feita essa ressalva, acompanhemos o jovem sacerdote que, aos 23 anos
incompletos, mergulha de vez no turbulento cenário político do Ceará. Ele já
carrega na bagagem, desde seus últimos anos no seminário, a experiência de
viajar pelas paróquias à procura de adesões à Liga Eleitoral Católica (LEC).
Uma experiência que colabora com o sucesso da LEC no Ceará, onde em 1934 ela
consegue emplacar Menezes Pimentel como Governador. Saindo do seminário, num
tempo recorde, Helder reorganiza a Juventude Operária Católica (JOC), funda a
Liga dos Professores Católicos, assim como um Sindicato para operárias e
empregadas domésticas.
Essas
atividades o colocam em contato com o fascismo. Quando, de visita a Fortaleza,
Plínio Salgado se encontra com Helder, ele se declara ‘vivamente impressionado
pela personalidade’ do jovem sacerdote. Será que nele vislumbra o que mais
falta à sua ‘Ação Integralista’, ou seja, um líder carismático? Plínio sabe
que, afinal, o fascismo está dando certo na Alemanha e na Itália por ser liderado
por figuras carismáticas, o que não acontece na França. Eis o sacerdote
embrulhado num jogo da qual ninguém é capaz de medir o alcance. Ele percebe a
mútua atração entre a LEC e a AIB de Plínio Salgado e compara o que acontece no
Brasil com o que está em marcha na Itália, onde a hierarquia católica flerta
com o fascismo de Mussolini. Não lhe escapa que os fascistas oferecem ao
catolicismo oportunidades inesperadas: o apoio das massas, jovens entusiasmados
e disciplinados, uma forte motivação, uma disciplina rígida, uma fórmula mágica
para afastar os trabalhadores do marxismo e superar a desordem. Como escreve
Paxton, ‘os fascistas oferecem uma nova receita de governo, contando com o
apoio popular, sem implicar numa divisão do poder com a esquerda, e sem representar
qualquer ameaça aos privilégios sociais e econômicos e ao domínio político dos
conservadores. Eles não ameaçam a classe conservadora do Brasil, que sempre
teve em mãos as chaves do poder’. Enfim, como ressalta o mesmo Paxton, ‘o
fascismo pode ser definido como uma forma de comportamento político marcada por
uma preocupação obsessiva com a decadência e a humilhação da comunidade, vista
como vítima, e por cultos compensatórios da unidade, da energia e da pureza,
nas quais um partido de base popular formado por militantes nacionalistas
engajados, operando em cooperação desconfortável, mas eficaz com as elites
tradicionais, repudia as liberdades democráticas e passa a perseguir objetivos
de limpeza étnica e expansão externa por meio de uma violência redentora e sem
estar submetido a restrições éticas ou legais de qualquer natureza’.
5. O
historiador cearense João Alfredo de Sousa Montenegro, em seu livro ‘O
Integralismo no Ceará’ (Fortaleza, Imprensa Oficial do Ceará, 1986), descreve
de modo pormenorizado a atuação de Helder Câmara no movimento fascista em
Fortaleza. Ele o mostra ardoroso, dinâmico, excelente orador, bom escritor,
hábil articulador, principalmente muito motivado e decidido de defender o
fascismo ‘acima de pau e pedra’. Num artigo publicado no Jornal ‘O Nordeste’
(da propriedade da Arquidiocese) em 4 de setembro de 1934, intitulado ‘O
Integralismo em face do Catolicismo’, Helder escreve: o nacionalismo
orgânico das pátrias totalitárias (leia: Alemanha de Hitler e Itália
de Mussolini) é o sentido novo do século(Montenegro, p. 170). Ele
considera o encontro entre catolicismo e integralismo ‘providencial’ e
fundamenta suas opiniões no verdadeiro intelectualismo tomista. O
ideal integralista destaca-se, no conjunto secular dos sistemas, pela dose
elevada de dados construtivos (Montenegro, ibidem). Enfim, o padre
Helder vê o Integralismo plenamente compatibilizado com o
catolicismo. É a única força capaz de combater
eficientemente o marxismo, fruto de um projeto determinista. O
impetuoso sacerdote chega a justificar a violência, embora em termos meio
crípticos: a violência integralista traduz a luta interior profunda e
purificadora com que nós temos de violentar. Nós somos os primeiros
grandes violentados pelo nosso ideal. Violentos também seremos, não o negamos,
contra os inimigos da pátria e os inimigos de Deus, mas quem lê os nossos
escritos e conhece nossas doutrinas, sabe que tudo subordinamos à moral (Montenegro,
p. 173). O próprio sacerdote, em bilhetes dirigidos a companheiros na lida fascista,
se subscreve comosacerdote camisa-verde do Ceará. Efetivamente,
veste a camisa verde em baixo da batina, o que não deixa de ser altamente
simbólico. Significa a adesão ao princípio da uniformidade, do alinhamento
autoritário a um pensamento único, da concordância, do corporativismo, da
unanimidade e da obediência. No caderno fotográfico inserido na biografia
de Helder Câmara redigida por Piletti & Praxedes, (‘Dom Hélder Câmara,
Entre o Poder e a Profecia’, Atica, São Paulo, 1997), há uma foto significativa
(embora tecnicamente deficiente) de Helder discursando, de braços levantados,
diante de militantes integralistas em pé.
Se os
gestos e as palavras de Helder hoje nos parecem exagerados e suas atitudes
provocativas, não podemos esquecer que ele, no fundo, está em sintonia com o
grupo de leigos católicos do Rio de Janeiro, convertidos pelo Cardeal Leme,
como Jackson de Figueiredo (fundador do Centro Dom Vital e da revista ‘A
Ordem’), Farias Brito, Alceu Amoroso Lima (empresário convertido em 1928) e Plínio
Correia de Oliveira. Mesmo alguns líderes negros, como Abdias do Nascimento e
João Cândido, se sentem atraídos pela LEC e pela AIB. O Centro Dom Vital
exerce grande influência sobre o grupo de jovens idealistas de Fortaleza, como
Jeová Mota, Ubirajara Índio do Ceará, Severino Sombra e Helder Câmara. Os dois
últimos lideram o grupo, imitam o modo de trabalhar do referido Centro,
escrevem artigos para ‘O Nordeste’, o jornal católico de Fortaleza e para
outros jornais. Eles chegam a lançar uma revista, intitulado ‘Bandeirantes’,
bem mais dinâmico e irrequieto que ‘A Ordem’, sua congênere carioca.
O
Presidente Getúlio Vargas, embora demonstre simpatias pela AIB e pelo fascismo
europeu, não se compromete e fica distante, avesso e ao caráter provocativo de
demonstrações militarizadas na rua e do Integralismo em geral. Mas não se pode
negar que, nos inícios dos anos 1930, se instala no Brasil um movimento
expressivo, potencialmente explosivo por ser de caráter autoritário, em
diversos pontos idêntico a igreja católica, ansioso por alcançar um poder
hegemônico sobre a sociedade, habitado pela ilusão de se pensar que sua tarefa
consiste em defender, com garras e dentes, o ideal de uma sociedade teocrática.
Em
1934, o ano da nova Constituição brasileira, a LEC se torna partido político no
Ceará (é o único estado da Confederação onde isso acontece). Nas eleições de
outubro 1934, a LEC supera PSD (Partido Social Democrático) e consegue emplacar
Menezes Pimentel como Governador. Nisso ajudam bastante posturas provocativas
expressas por jornalistas improvisados como Helder Câmara, que não receiam em
usar expressões como ‘exigências católicas’, ‘reivindicações católicas’,
‘imperativos do Partido de Deus’, ‘ofensivas contra o laicismo do Estado
brasileiro’, que defendem o ensino religioso (leia: catequese) nas escolas
públicas e que combatem ao mesmo tempo o liberalismo, a democracia, o
comunismo, o espiritismo e o protestantismo. Por meio da LEC, a bandeira
fascista passa para mãos católicas. Exemplos: o padre Helder promove a
aproximação entre a Juventude Operária Católica (a JOC) e a Legião Cearense do
Trabalho, capitaneada pelo amigo Severino Sombra e faz com que ambos os
movimentos se tornem vertentes da Ação Integralista Brasileira no setor da
Juventude. O padre Helder leva igualmente o ‘Movimento da Sindicalização
Operária Católica Feminina’, por ele fundado em julho 1933 com o objetivo
de reunir e defender os direitos das lavadeiras, engomadeiras,
domésticas, cozinheiras, amas e copeiras da cidade, para a AIB, mesmo
sob a acusação de ‘despertar o rancor entre patroas e empregadas’ e se prestar
à ‘autopromoção e exibição pessoal do jovem padre, as custas das operárias’
(Piletti, p. 84)
As
atividades do padre Helder chegam a um paroxismo no ano 1935. Ele é nomeado
Diretor da Instrução Pública no Ceará, um dos postos mais altos do Governo, no
momento em que o Governador Menezes Pimentel dá sinais de se distanciar dos
posicionamentos da Ação Integralista. Como Getúlio Vargas na Capital, Pimentel
teme manifestações públicas de cunho provocativo e ostentações militarizadas
nas ruas. Sentindo a pressão por parte do Governo, Helder, após cinco meses no
cargo, pede demissão. Nisso certamente colaborou um vago sentimento que o
Arcebispo Dom Manuel não o apoia mais como antes. Além disso, correm boatos
sobre um pretenso caso de namoro seu. Tudo isso faz com que, no segundo
semestre de 1935, Helder entre no que Piletti chama ‘inferno astral’ (Piletti,
p. 115).
6.
Efetivamente, aos 27 anos, uma crise afeta o jovem padre. Ele percebe que seu
impulso o levou longe demais e que ele corre o perigo de entrar numa ‘espiral
da violência’, uma evolução que mais tarde condenará com muita insistência. Ele
sente o contraste entre os quatro primeiros anos de sacerdócio e a ‘Regra de
Vida’, acalentada em tempos de seminário, percebe que é relativamente fácil
formular proposições generosas, mas que o problema consiste em agir dentro do
complexo entrelaçamento de influências, de fios entremeados, que ele não sabe
desfiar. Só muito mais tarde, ele será capaz de avaliar o real funcionamento
das estruturas, tanto seculares como religiosas, em que está metido. Só pouco
tempo antes de morrer, ele faz uma surpreendente avaliação acerca da igreja
católica, quando confidencia a um grupo de amigos que em sua opinião a
igreja está atrelada à engrenagem internacional do dinheiro e não vai poder
livrar-se dele(depoimento de Sebastião Armando Gameleira em Félix Filho,
‘Além das ideias’, Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2012, p. 19). Na
mesma oportunidade, ele comenta o fato que o Papa João Paulo II, ao visitar o
Brasil em 1982, se deixa acompanhar por Monsenhor Marcinkus, diretor do Banco
do Vaticano, metido em processos de corrupção e diz: quando se é
beneficiado dessa maneira, fica-se de mãos atadas (ibidem, p. 18). Não
posso me imaginar o jovem padre Helder, em 1936, dizendo coisas desse tipo.
Metido num sistema marcado pelo autoritarismo de uma hierarquia rigidamente
organizada (‘a igreja não é uma democracia’), tendo de lidar com políticos que
não dizem o que pensam e fazem o que não dizem, ele mesmo sem saber ao certo
como enveredar num caminho de melhoria para a maioria da população, Helder se
sente inseguro. Percebe vagamente a ambiguidade com que se recorre ao termo
‘comunista’ para conquistar espaço político e, de outro lado, vislumbra a
permanência cruel e mortífero do sistema escravagista, camuflada por expressões
como ‘bondade’, ‘cordialidade’ e ‘aversão à violência’, pretensamente atributos
das classes dirigentes do país. Lembro aqui que o livro ‘Raízes do Brasil’, de
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), em que se apresenta o modelo do ‘homem
cordial’, sai em 1936, exatamente no ano da crise de Helder. Não sei se naquele
tempo ressoam ao seu ouvido as seguintes palavras de Joaquim Nabuco, contrárias
às teses de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda: ‘diz-se que, entre
nós, os senhores são bons. Acontece que a bondade dos senhores não passa de
resignação por parte dos escravos’. Não há, naqueles anos, menção de reflexões,
por parte do padre Helder, em torno da questão crucial da escravidão
persistente no Brasil. Só em 1955, desafiado pelo Cardeal francês Gerlier, o
então bispo auxiliar do Rio de Janeiro conseguirá finalmente segurar uma
‘bússola’ na mão e saberá ‘onde está o Norte’. Mas isso é uma outra história.
7.
Voltemos à cena cearense. Ao participar de manifestações provocativas, por
parte da Ação Integralista Brasileira, contra as reticências do governador e do
arcebispo, Helder percebe que coloca esse último numa virtual rota de colisão
com Dom Leme, o Cardeal no Rio de Janeiro, que proíbe os padres a se meter em
política. Ele entrevê, inclusive, problemas com o Núncio Apostólico. Diante
disso examina, por conta própria (e com a silenciosa aquiescência do
arcebispo), as possibilidades de sair do Ceará e conseguir, junto a amigos, um
emprego na área da Educação no Rio de Janeiro, na época Capital da República.
Resolve apelar para Manuel Lourenço Filho (1897-1970), que trabalha no
Ministério da Educação no Rio de Janeiro após uma breve mais significativa
atuação no campo da educação pública em terras cearenses. Proveniente do Estado
de São Paulo e expoente da ‘Escola Nova’, com Fernando de Azevedo e Anísio
Teixeira, ele faz parte de uma vanguarda de educadores que milita contra a
elitização da inteligência, a favor das classes populares e do ensino secular.
Com isso, entra inevitavelmente em rota de colisão com a ‘escola tradicional’,
de cunho religioso, defendida pela igreja católica. Em 1922, Lourenço Filho
aceita um convite por parte do governo cearense e, aos 25 anos, se torna
Diretor da Instrução Pública no Ceará, função em que permanece apenas dois
anos, o tempo suficiente para promover em todo o estado uma educação pública de
qualidade (até hoje existe o ‘Colégio Lourenço Filho’ em Fortaleza), uma
experiência que repercute em todo o Brasil e mesmo fora dele. Em diversas
ocasiões, Helder hostiliza o posicionamento assumido por Lourenço Filho, mas,
mesmo assim, estando em apuros, apela para ele e lhe solicita falar com o
Ministro de Educação do Governo Vargas, o católico Gustavo Capanema
(1900-1985), para ver se ele consegue uma colocação na área da educação no Rio
de Janeiro. É com grandeza e numa demonstração de maturidade que Lourenço Filho
atende a um pedido de seu sucessor no cargo de Diretor da Instrução Pública no
Ceará, Helder Câmara, que lhe deposita inteira confiança, com comprova o
seguinte telegrama por ele enviado e que está publicado na biografia de
Piletti: Exultaria amigo conseguisse Capanema margem colaborar
instituto ou ministério. Solicitaria convite seu possa mostrar mover
arcebispo (Piletti p. 117).
8.
Lourenço Filho ‘salva’ Helder Câmara, que consegue o que pede e viaja para o
Rio de Janeiro. Não se pense, contudo, que ele largue de vez o ideal fascista.
Nem ele, nem a maioria dos militantes católicos da época. Ainda em fevereiro
1937, por ocasião de um debate durante a VI Conferência Nacional de Educação,
promovida, na cidade de Fortaleza, pela Associação Brasileira de Educação
(ABE), ele faz um apelo dramático a seus correligionários da Confederação
Católica de Educação, para que, com ele, se retirem do recinto. Tal gesto, que
deixa vazio o auditório naquela noite, se deve à inutilidade dos esforços seus
e de seus pares para influírem nas conclusões daquele evento, em face do
posicionamento de seus promotores, partidários da Escola Nova e defensores da
escola pública, obrigatória, gratuita e laica, um posicionamento contrário à
orientação da igreja católica. O padre Helder é intransigente e afirma sem mais
nem menos que a ‘Escola Nova’ retira a educação das mãos da família,
destruindo, assim, o princípio da liberdade do ensino (Rocha, Zildo, A
Dimensão sócio-política da religião na vida e na obra de Dom Helder Câmara,
Palestra na Câmara Municipal de Olinda em Sessão póstuma de Homenagem a Dom
Helder e publicada na terceira edição de um livro do mesmo autor, intitulado
‘Helder, o Dom, uma vida que marcou os rumos da Igreja no Brasil’, Vozes,
Petrópolis, 1999). Zildo Rocha acrescenta: ‘causa-nos espanto o episódio da surra
infligida, ainda por ocasião daquela VI Conferência Nacional (da Educação, veja
acima), ao escolanovista Edgar Sussekind de Mendonça, por um grupo de jovens
integralistas, comandados pelo próprio Padre Helder, que ostentava por baixo da
batina preta, entreaberta ao peito, a camisa verde integralista, em desagravo
por um insulto e um desafio feitos durante um dos debates’ (ibidem).
Ao
deixar Fortaleza, Helder continua sintonizado com uma hierarquia católica que
acompanha com simpatia as vitórias de Hitler na Europa, como consta na manchete
do Jornal A Razão (do Rio de Janeiro) de 15 de março de 1938: ‘Um povo, um
reich, um führer. A entrada triunfal de Hitler em Viena. O Cardeal Arcebispo
manda celebrar missas em ação de graça pela reincorporação incruenta da Áustria
à Alemanha’. Enquanto a hierarquia católica continua atirando por todos os
lados, contra o comunismo, o protestantismo, a maçonaria, o espiritismo, enfim,
contra tudo que não é católico, ela só abandona definitivamente o ideal
fascista em agosto 1942, quando o governo de Getúlio Vargas finalmente rompe
com a Alemanha.
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