Por Frei Betto
Há
momentos em que prefiro Bach, na expectativa de que me antecipe o céu. Em
outros, Tchaikovsky, para que me suscite energias criativas. Nosso estado de
espírito muda de acordo com as circunstâncias. Como reza o Eclesiastes, há
tempo para tudo, de destruir e de construir, de chorar e de rir. Agora,
vitoriosos e derrotados na eleição presidencial conhecem tempos distintos.
Passado
o pleito, as fissuras abertas no estado de espírito do brasileiro ainda não
cicatrizaram. Relações familiares foram rompidas, amizades se desfizeram,
batalhas nas redes digitais se intensificaram.
Conhecida
a preferência das urnas, os estados de espírito variam. Há derrotados que
sofrem de melancolia e insônia, afogam-se em inquietações e lamúrias. Os mais
politizados afirmam que é hora de o PT fazer autocrítica e se reinventar. Mas
há quem insista que não há do que se arrepender; os acertos do partido teriam
sido maiores que os erros. E há ainda os que estão convencidos de que o PT
acabou, ainda que tenha elegido a maior bancada da Câmara dos Deputados e
quatro governadores.
Do
lado vitorioso, o estado de espírito varia da euforia desaforada, ao fazer eco
ao eleito de que é hora de passar o trator na oposição, ao receio de que o novo
governo não corresponda à expectativa criada. Depositou-se o voto na caixa de
Pandora sem saber o que ela contém. A democracia será aprimorada ou a censura
estará de volta? A Escola sem Partido criará um clima de terror nas salas de
aula? Sérgio Moro fez bem ao se deixar picar pela mosca azul? O Brasil haverá
de superar a recessão, retomar o crescimento e reduzir o desemprego?
Eleitores
de um e de outro têm um sentimento comum: medo. Não do mesmo tipo. O dos
antibolsonaristas é o de que vândalos antipetistas aprofundem o clima de
intolerância e ameacem direitos constitucionais, como a liberdade de expressão.
Alguns derrotados mais aquinhoados cogitam deixar o país.
Do
lado da situação, o medo é ver tamanha esperança precocemente abortada.
Desavenças na equipe de governo, nomeação de políticos acusados de corrupção,
atropelos entre os poderes, e dificuldade de aprovar as tão propaladas
reformas. Medo de ser feliz à custa do encolhimento dos direitos civis e do
espaço democrático.
A
eleição deste ano representou o canto do cisne da Nova República. Ninguém sabe
o que virá pela frente, nem mesmo aqueles que se preparam para governar. O
programa de governo apresentado é superficial. Prefere apontar prioridades,
como a reforma da Previdência, o combate ao crime organizado e o equilíbrio das
contas públicas. Mas como fazê-los?, eis o dilema.
Na
reforma da Previdência, haverá quem seja poupado, como os militares? No combate
ao crime organizado a prioridade é prender bandidos ou erradicar as causas que
favorecem o narcotráfico, o comércio ilegal de armas e as penitenciárias como
centrais do crime? E na questão fiscal, mais cortes, mais contingenciamentos e
privatizações ou o Estado como indutor do desenvolvimento e da criação de
empregos? E como fica a prioridade das prioridades do brasileiro, o atendimento
à saúde? Com a saída dos médicos de Cuba que atendiam a população mais pobre e
as áreas mais remotas do país, quem e quando serão substituídos,
sobretudo nos 3.228 municípios assistidos exclusivamente pelos cubanos?
“Não
se faz omelete sem quebrar os ovos”, diz o ditado. Que ovos serão quebrados? E
quem haverá de comer o omelete? É bom lembrar que, dos 208 milhões de
brasileiros, mais de 100 milhões sobrevivem com menos de R$ 954 (valor do
salário mínimo) por mês. Destes, 52 milhões estão abaixo da linha da pobreza,
ou seja, sobrevivem com menos de R$ 547,20/mês. Isso significa que 90% dos
brasileiros ganham, por mês, muito menos que o auxílio-moradia dos juízes, que
é de R$ 4.378.
Ora,
o Brasil não terá futuro e o estado de espírito do brasileiro não haverá de
melhorar enquanto o problema número 1 do país não for decididamente atacado: a
desigualdade social. Só os cínicos e os ególatras conseguem aparentar
felicidade com tanta infelicidade em volta.
Frei Betto é escritor, autor do
romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
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