Por
Marcelo Barros
Ninguém
se dá vida a si mesmo. A mãe dá a luz ao filho ou filha. Todos nós recebemos a vida
de nossos pais e mães. Maria Zambrano, filósofa espanhola do século XX,
afirmava que se a vida é sempre doada de um ser a outro, é dada para ser
desenvolvida. Ninguém nasce de uma vez por todas. O nascimento é apenas começo
de um processo que consiste em nascimentos constantes. Assim, nascer não é
apenas um evento do passado que lembramos no dia do aniversário. Coloca-se
diante de nós, como algo a ser aperfeiçoado e completado. Viver é renascer continuamente,
como renasce a aurora de cada novo dia.
A
transformação interior das pessoas não pode ser desligada da tarefa de mudar a
sociedade. Os grupos de esquerda tendem a privilegiar o coletivo e nem sempre
educam as pessoas para o processo de permanente mudança interior. Os
espiritualistas têm a sensibilidade oposta. Pensam que, à medida que cada
pessoa mudar interiormente, o mundo inteiro começa a mudar. Conta-se a parábola
do passarinho que, ao ver a floresta pegar fogo, voa até o rio e traz no bico
uma gota d’água para apagar o incêndio. Joga a gota d’água e volta ao rio para
buscar outra gota d’água. Outros pássaros lhe dizem que aquele seu trabalho não
conseguirá apagar o incêndio. Mas, o herói alado responde: - Ao menos, estou
fazendo a minha parte.
Quem
analisa melhor a sociedade sabe que é importante, como dizia Gandhi “começar
por si mesmo a mudança que se quer para o mundo”. No entanto, isso só funciona
se a parte mais sadia da sociedade conseguir se organizar para lutar contra
estruturas que vão além das vontades humanas e do coração das pessoas. Esse
processo supõe que a dimensão pessoal se articule dialeticamente com a social. É
preciso uma mudança que atinja o plano interior das pessoas e concomitantemente
a dimensão social.
Esse
tem sido sempre o apelo que todas as religiões e caminhos espirituais acolhem
como apelo divino. Conforme a maioria das tradições, é o Espírito de Deus em
nós que nos chama permanentemente a uma renovação total do mais íntimo do nosso
ser e à transformação do mundo. É isso que o Cristianismo se propõe a celebrar
no Natal. Os antigos pastores das Igrejas cristãs afirmavam: “No Natal, o
Espírito de Deus se manifestou no homem Jesus, para que o ser humano se
tornasse divino”. Isso significa que para os cristãos não é apenas Jesus que se
parece com Deus (o Pai). É Deus que se apresenta a nós parecido com Jesus,
pessoa humana como qualquer um de nós. Isso nos leva a assumir mais e melhor
nossa realidade humana. Deus nos ama como somos. Como a vida é constante
processo de renovação interior, somos chamados a sim a nos transformar e
amadurecer permanentemente, mas sem que isso nos leve lutar contra nós mesmos.
Só seremos capazes de conviver com os outros e compreendê-los, se aprendermos a
conviver melhor conosco mesmos.
No
Natal, ao nos dar Jesus como sua palavra de amor, Deus puxou o diálogo conosco.
Ele tinha iniciado esse diálogo através das mais diferentes revelações de sua
presença e seu amor, nas mais diferentes religiões e caminhos espirituais. Na
Bíblia, revelou o seu projeto para o mundo: uma humanidade de irmãos que cuidam
do mundo com amor e cuidado. No nascimento de Jesus, se revela como pequeno e
pobre. É uma indicação de caminho de como podemos nos tornar mais humanos e
mais capazes de dialogar.
Não
é fácil dialogar em um mundo no qual a sociedade é organizada contra o respeito
aos diferentes e o diálogo com o outro. Em um Brasil no qual muitos escolheram
como caminho de organização social e política uma proposta de intolerância e
mesmo de violência, mais ainda do que antes, o diálogo claro e positivo será a
nossa profecia. Não cansaremos de afirmar nossa opção pela vida da humanidade e
do planeta. Não deixaremos de combater as desigualdades sociais e a injustiças.
Estaremos sempre do lado dos índios, negros e de todas as minorias sociais e
sexuais.
Em
Gênova, na Itália, o padre e biblista Paulo Farinella anuncia que nesse Natal,
ele e sua comunidade não celebrarão nenhum culto público como protesto contra a
lei do governo italiano que discrimina estrangeiros e persegue migrantes. Assim
como Jesus, ainda criança, teve de fugir para o Egito afim de não ser morto por
Herodes, atualmente os migrantes se tornam clandestinos para não morrerem. Não
tem sentido celebrar Natal nesse contexto e quando muitos cristãos parecem
insensíveis a essa tragédia.
No
Brasil, celebraremos o Natal com esse sabor de festa e de dor. É através da
solidariedade humana e da opção pelos excluídos que aprofundamos juntos o
caminho de Jesus e reafirmamos o sentido do Natal.
MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros
publicados, dos quais “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da
Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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