por Eduardo Hoornaert
Em homenagem a
Leonardo Boff,
por ocasião de seus
oitenta anos
de vida bem vivida
(14/12/2018).
Tal qual foi inspirado e animado pelo
bispo de Recife, Helder Câmara, o ‘Encontro de Irmãos’, concretização local do
movimento de ‘Comunidades de Base’, que na época se espalhava pelo Brasil
afora, apresenta um método educacional de rara autenticidade. Embora só
vigorando apenas ao longo de aproximadamente quinze anos (entre 1969 e 1985), o
‘Encontro de Irmãos’ transcende a história e nos conserva hoje lições
importantes para um trabalho educacional de alta qualidade, seja em meio
popular, seja em outros meios.
Primeiros esboços de um novo método
educacional.
Na Semana Santa de 1969, no exato
quinto aniversário do golpe militar de 1 de abril de 1964, o bispo de Recife,
Helder Câmara, lança o ‘Movimento de Evangelização Encontro de Irmãos’ que,
sendo oficialmente extinto por seu sucessor em 1985 ou 1986, atua por
aproximadamente quinze anos. Baseado na mística de Pentecostes, a oficialização
do Encontro de Irmãos e seu ‘batismo’ se dão nas festas de Pentecostes em maio
de 1969. Nos anos seguintes, o movimento comemora seu aniversário na festa de
Pentecostes, 50 dias após a Páscoa. Em determinados anos, uma média de dez mil
pessoas caminha uma noite toda em direção à igreja dos Guararapes (perto do
aeroporto) para ali celebrar a missa de Pentecostes.
E como o bispo Helder Câmara dá um
tom místico a tudo que diz e faz, pode-se dizer que o Encontro de Irmãos nasce
místico. A fé no poder do Espírito Santo anima as pessoas que dele participam.
Não por acaso, é na Festa de Pentecostes que surge o nome ‘Encontro de Irmãos’.
Pouco importa a precariedade dessa
experiência em termos de duração, o que nela não passa é o valor de um método
que escapa às vicissitudes do tempo. A tal ponto que não hesito em afirmar aqui
que o ‘Encontro de Irmãos’ é a iniciativa mais importante da vida de Helder
Câmara.
Nele há como detectar influências
provenientes de iniciativas que remontam à década de 1950. Comentaristas
apontam, já naquela década, sinais esporádicos da emergência do que
ulteriormente passa a se chamar ‘Comunidade de Base’. Assim a iniciativa de
‘catequese popular’ na Diocese de Barra do Piraí (Volta Redonda, Estado do Rio
de Janeiro, 1956), em que se resolve reunir as catequistas em grupos para
estudar e discutir as lições programadas, ou ainda o projeto de catequese por
meio radiofônico, estimulada pelo então bispo auxiliar de Natal, Eugênio Sales.
Por sinal, esse projeto postula a ação de ‘monitores’ a acompanhar a
compreensão das emissões radiofônicas por grupos locais. Mais adiante, Sales
vai promover a criação de ‘Centros de Formação de Líderes’, primeiramente em
Natal (1958-1960) e depois em Salvador (1964-1971), sempre com a finalidade de
formar monitores a acompanhar grupos de estudo.
Emerge aos
poucos a expressão ‘Comunidade de Base’. Aqui e acolá emergem comunidades,
geralmente reunidas em função da proximidade territorial e de carências e
misérias em comum, compostas principalmente por membros de classes populares
despossuídas, vinculadas a uma igreja ou a uma comunidade, cujo objetivo é a
leitura bíblica em articulação com a vida, com a realidade politica e social em
que vivem e com as misérias cotidianas com que se deparam na matriz ordinária
de suas vidas. Aqui já emerge o ‘método Cardijn’, (ver, julgar, agir). Enfim,
esses grupos passam a olhar de modo diferente a realidade em que vivem
(ver), a julgá-la com os olhos da fé (julgar) e a tentar transformá-la (agir).
No mesmo contexto nasce o ‘Movimento
de Educação de Base’ (MEB), que trabalha igualmente por meio de emissões
radiofônicas. Como a iniciativa, de início, recebe forte crítica por parte de
Paulo Freire no sentido que não conseguiria ultrapassar a tradicional
passividade do povo e não promoveria um diálogo entre programadores e ouvintes,
o MEB, na época coordenado pelo bispo auxiliar do Rio de Janeiro, José Távora,
lança a cartilha ‘Viver é Lutar’, um texto redigido para ser discutida em
‘círculos’ animados por ‘monitores’. Imediatamente, o Governador do Rio, Carlos
Lacerda cai em cima da iniciativa e a sufoca.
A teóloga Maria
Clara Bingemer detecta quatro traços distintivos na Comunidade de Base: (1) a
territorialidade: as pessoas se reúnem por proximidade geográfica e isso faz
com que suas reivindicações sejam confluentes; (2) o fator bíblico: muitos
grupos se reúnem para leitura e reflexão da Palavra de Deus e confrontá-la com
a vida cotidiana. Muitas comunidades emergem desses círculos bíblicos e passam a
organizar a celebração dominical com ou sem sacerdote. Em alguns lugares se
ouve a palavra de um bispo ou de um líder comunitário (como acontece em Recife
com a palavra diária de Helder Câmara no programa radiofônico ‘Um olhar sobre a
ciade’); (3) o fator discussão: problemas comunitários são discutidos em
conselhos ou assembleias, com ampla participação dos membros; (4) o fator
ministerial: a partir das necessidades de uma determinada comunidade surge um
tipo de ministério leigo, como, por exemplo, o ‘ministro da Eucaristia’, o ‘ministro do Batismo’, um agente de pastoral
específica ou de algum grupo de alfabetização de adultos, de creches,
bibliotecas, hortas comunitárias, clubes de mães.
Bingemer abre um
vasto leque de possibilidades para a atuaçao de uma Comunidade de Base. A
partir da reflexão sobre os problemas da família, do trabalho e do bairro, a
Comunidade de Base ajuda a criar movimentos sociais: associações de moradores,
organizações sindicais, luta pela terra, fortalecimento do movimento operário.
Por suas características ecumênicas, o movimento extrapola os limites da Igreja Católica e
as comunidades passam contar com representantes de igrejas como a Metodista, aLuterana, a Presbiteriana, a Batista.
Durante a tradicional ‘Semana de
Evangelização’ de março 1969, a Diocese de Recife faz um chamado a todas as
paróquias no sentido de aderir a um novo projeto, chamado ‘Encontro de Irmãos’.
Na formulação do convite aparecem termos como ‘libertação’ e ‘conscientização’,
além da expressão emblemática ‘pobres evangelizando pobres’. Das 72 paróquias,
42 aderem ao projeto. As paróquias mais ricas não respondem. Isso se entende,
pois em dezembro de 1968, por meio do Ato Institucional Número 5 (o famoso
AI-5), o governo militar fecha o pouco de abertura política que ainda resta no
país. Os tempos são perigosos. Em aparente represália à ousadia do bispo no
sentido de falar em ‘conscientização do pobre’, a Ditadura Militar, utilizando
seus grupos clandestinos, sequestra, no dia 28 de maio de 1969, o Padre Antônio
Henrique Pereira Neto, coordenador da Pastoral da Juventude. O jovem sacerdote
é torturado até a morte, seu corpo é jogado num matagal na Cidade
Universitária. Mas nem Helder nem o povo recuam. Milhares de pessoas, em
procissão, acompanham o enterro do Padre Henrique cantando: Prova de
amor maior não há que doar a vida pelo irmão! A perseguição continua.
Em dezembro de 1972, no encerramento do Conselho Anual do Encontro de Irmãos, o
seu coordenador, João Francisco, é sequestrado pela Polícia Federal. Durante
quinze dias, ninguém tem notícia de seu paradeiro. Então, o Encontro de Irmãos
faz o que nunca se tinha feito antes para um preso político: lota a Igreja da
Madre de Deus e faz vigília de adoração. Vem gente de tudo que é lugar, Helder
Câmara à frente. Após 15 dias, João Francisco aparece são e salvo. Com sua
saída (ele viaja com a família ao Sul do país), quem fica como coordenador
geral é Abdalaziz Moura. Em pouco tempo, o Encontro de Irmãos conta com 248
núcleos organizados nas periferias da Região Metropolitana do Recife. O
Conselho anual é o órgão máximo do Movimento. Com o Boletim se faz a preparação
e a devolução do Conselho Anual nos núcleos. No Conselho, participam os
representes dos núcleos, escolhidos por eles mesmos. Os núcleos são agrupados
em setores, formados por um bairro ou mais, até por um município. Há doze
setores, nos quais se realiza treinamento para a formação, por meio de um
domingo de estudo a cada três meses. Na Assembleia Anual do Conselho é que se
escolhe a equipe executiva com dois representantes de cada setor. A equipe
executiva se reúne uma vez por mês. Sua tarefa consiste em encaminhar as
decisões do Conselho Anual à base do movimento. Dentro da equipe executiva há
coordenadores que são liberados para dar expediente na sede do Movimento, fazer
relatório, roteiro, boletim, atender ao público, preparar e fazer o programa na
rádio Olinda e acompanhar os setores. Esses coordenadores são indicados pelo
Conselho Anual. O bispo se limita a confirmar as decisões desse Conselho.
Enfim, trata-se de um movimento que se auto sustenta.
O verdadeiramente importante, na
trajetória de quinze anos do ‘Encontro de Irmãos’ (1969-1985), consiste no fato
que ele inicia um processo educacional que supera as vicissitudes do momento.
Ao formar monitores e animadores para pequenos grupos de evangelização atuantes
nos bairros pobres da cidade de Recife, abre perspectivas pedagógicas além do
tempo e do espaço. A fórmula é simples: as pessoas se reúnem para ouvir pela
Rádio Olinda comentários diários sobre a Bíblia e a atualidade, feitos pelo
bispo. Depois discutem entre si o que entenderam ou, simplesmente, falam o que
desejam dizer em torno do programa radiofônico. Aproveitam para se encontrar e
fazer a reunião. O programa diário de rádio é a voz do Encontro de Irmãos. Os
grupos vão crescendo e chegam a quatrocentos núcleos. Espalham-se para outras
dioceses em Pernambuco e para outros Estados do Nordeste.
Saber.
Os agentes de pastoral, quando alguém
lhes pergunta o que é o Encontro de Irmãos, costumam dizer: ‘são pobres
evangelizando pobres’. Falam também em ‘jeito diferente de evangelizar’,
‘trabalhar com o povo e não para o povo’, ‘ensinar a pescar e não só dar o
peixe’, ‘não ir atrás e nem na frente, mas no meio do povo’, ou ainda: ‘antes
de ensinar ao povo, devemos aprender com ele’, ‘devemos devolver a palavra ao
povo’, ‘o povo toma seu destino em mãos’. O Encontro de Irmãos se apresenta,
pois, como um método educacional. Os animadores costumam se referir ao ‘método
Paulo Freire’ e aludir ao livro ‘Pedagogia do Oprimido’, da autoria do
pedagogo, que está convencido que a educação está umbilicalmente ligada à
situação em que um determinado povo vive e que, por conseguinte, não existe
pedagogia neutra. Ela implica sempre numa análise da sociedade em que se vive.
Perceber esse dado não é tão fácil, pois os relatos que recebemos acerca de
sociedades do passado e suas peripécias, normalmente mantêm silêncio acerca das
situações econômicas, sociais e políticas em que as populações do passado
realmente viviam. Só para dar um exemplo: quando estudamos o antigo Império
Romano, ouvimos falar em imperadores, legiões conquistadoras, guerras,
administrações públicas, ‘paz romana’, mas quase nunca os livros nos informam
que toda essa historiografia só narra as peripécias de apenas 1 % da população
do Império, uma elite capaz de ler e escrever. Dos aproximadamente 60 milhões
de habitantes do Império Romano, a vida e os anseios de aproximadamente 50 mil
pessoas nos são conhecidos por meio de uma historiografia de ‘fatos e eventos’,
a historiografia normal. A história dos 99 % cai no ocultamento e, mais tarde,
no silenciamento. É, largamente, a história silenciada da escravidão. O valor
do método Paulo Freire, quando aplicado ao Brasil, consiste no fato que ele,
mesmo sem explicitar a coisa, remete à escravidão, ou seja, à vida concreta de
pessoas secularmente submetidas a um dos mais recorrentes e vergonhosos
procedimentos da história da humanidade desde os tempos neolíticos, a partir do
momento em que pessoas se apoderaram de outras pessoas para fazer guerra,
cultivar terrenos, produzir lucro, reservar para si as riquezas da terra. A
escravidão é uma estruturação societária tenaz, que atravessa milênios e
continua em vigor nos dias de hoje, de modo camuflado.
Ver as coisas sob esse ângulo nos
leva à pedagogia do velho filósofo educador grego Sócrates, do século V aC.
Pode-se perguntar: por que invocar Sócrates aqui? Isso não complica as coisas?
Já não temos Paulo Freire para nos indicar os rumos da ‘pedagogia do oprimido’?
Respondo dizendo que Sócrates explicita com maior precisão e maior insistência
que Paulo Freire o segundo passo do que ele elabora como sendo o ‘método da
educação’. O passo de como agir depois de adquirir uma nova consciência. Penso
que essa maior precisão provém do fato que Sócrates vive em uma cidade, Atenas,
explicitamente escravocrata. Os aproximadamente cinco mil ‘cidadãos’ são
servidos por não menos de cem mil escravos (alguns historiadores falam em
números ainda mais altos). Nos documentos que nos restam desse tempo,
praticamente não se fala em escravidão. Só alguns dramaturgos, como
Aristófanes, colocam escravos em cena, sempre de modo burlesco. É que a escravidão
é considerada um dado ‘natural’, fazendo parte da vida natural. ‘Alguns nascem
escravos’, dirá mais tarde Aristóteles. Tenho por mim que o trabalho educativo
de Sócrates tem muito a ver com a escravidão reinante e que, inclusive, é
provavelmente por causa dessa ‘intromissão’ em assunto tabu que ele finalmente
é condenado à morte pelas autoridades de Atenas. De qualquer modo, estudar o
‘método socrático’ diante do pano de fundo da escravidão reinante confere um
relevo ao pensamento do educador e realça seu valor universal. Diante do
panorama da escravidão, os três passos conhecidos da educação socrática:
‘pensar’, ‘agir’ e ‘dialogar’, ganham um significado universal, além do tempo e
do espaço.
Quando aborda o tema da educação,
Sócrates recorre ao termo grego ‘maiêutica’, que significa ‘arte da parteira’.
A mãe do filósofo era parteira, ela ajudava a trazer à luz a criança oculta do
ventre da mãe. Exatamente o que faz o educador, diz Sócrates. A educação ‘tira
de dentro’, faz emergir o que existe, mas parece não existir. Ela faz com que a
pessoa tome consciência daquilo que na realidade já sabe, mas ‘não sabe que
sabe’ (a formulação é de Marilena Chaui), não toma consciência de seu saber. No
ventre da mãe, a criança vive, mas não se manifesta (não estende a mão). Do
mesmo modo, o discípulo (escravo?) sabe, mas seu saber não aflora à consciência
e, portanto, não se traduz em atos manifestos. A pessoa, oprimida é acometida
por abatimento, depressão, tristeza, resignação, revolta, até pensamento de
suicídio, ou então se resigna na conformidade, obediência servil e hipocrisia,
identificação com o modo de pensar de seu amo. Ela não pensa mais, o amo pensa
nela (veja o filme: ‘crepúsculo do dia’). No caso concreto da vida em Atenas, o
escravo segue fielmente a religião, oferece sacrifícios aos deuses protetores
da cidade, obedece às leis, parece integrado na vida social (veja a ‘Apologia
de Sócrates’, compilada por seu discípulo Platão).
Há algo trágico nessa recusa, por
parte do escravo, em pensar de modo independente, pois é exatamente seu ‘não
saber que sabe’ que o mantém escravo. Diante dessa situação, um educador como
Sócrates resolve fazer-lhe perguntas e mais perguntas, até chegar a um ponto em
que a contradição fica patente. O mestre ateniense resume esse método de
questionamento numa só curta frase: ‘gnôti seauton’ (conheça-se a si mesmo).
Ele mexe num caldo de sentimentos mal confessados e muitas vezes
subconscientes, mas insiste pacientemente, como a parteira. Até extrair do
discípulo o que sabe, mas até então não quis saber que sabe.
Agir.
No momento em que ‘sabe que sabe’, o
discípulo escuta de seu mestre: perigo a vista! Sinal amarelo! Seja prudente e,
sobretudo, astuto! Pois o saber socrático é um saber subversivo, não combina
com os modos em que a sociedade estabelecida está organizada.
Aqui entra uma segunda fase do
processo educacional, que consiste em praticar a ‘eirôneia’ (ironia). Cuidado,
esse termo, dentro da filosofia de Sócrates, não significa exatamente o mesmo
do que hoje costumamos entender por ‘ironia’. A ironia socrática é fingimento,
dúvida fingida. Quando se atribui a Sócrates frases como: ‘só sei que não sei
nada’, ou ‘duvido de tudo’, não se pode esquecer que essas frases só têm
sentido dentro de uma estratégia de ocultamento do que se pensa realmente. Se
Sócrates disser em todas as letras o que pensa, ele entra imediatamente em
confronto com as leis de Atenas, a devoção aos deuses protetores da cidade, a
opinião comum.
El dia que diga lo que pienso
Me borran del mapa.
Na segunda fase da aprendizagem
socrática, os discípulos aprendem a fingir que continuam a ‘não saber que
sabem’. Em se fazer de bobo ou idiota, esquisito ou desajustado, estranho
(‘eirônikos’ em grego) ou desajeitado, ignorante (‘eirôn’ em grego) ou
mal-acostumado, o discípulo evita um choque frontal com a mentalidade
estabelecida. É que ele aguarda o momento em que o movimento do qual participa
(veja adiante neste texto) conquiste real poder político. Aí pode tirar a
máscara.
Pois Sócrates parte da ideia que o
ser humano é frágil e vulnerável, mas que, mesmo assim, é capaz de cultivar a
esperança, o que só é possível sob o disfarce da ignorância. Se a meta consiste
em formar um movimento de pessoas livres, então é preferível que os discípulos
não se exibam nem façam declarações peremptórias, que finjam ignorância, se
preciso for, para poder progredir, passo a passo, até que o movimento alcance
um grau de organização capaz de enfrentar o poder constituído. O mestre sugere
jogos de ditos e não ditos, gestos aparentemente improvisados, atitudes das
quais não se sabe se são para valer ou não, sempre dentro dos parâmetros
da ‘ignorância fingida’. Desse
modo, o discípulo pode escapar a seus oponentes. Mas não se confunda a eirôneia
socrática com a ironia cínica, que é de outro quilate. Embora os cínicos tenham
desfrutado, durante séculos, de grande popularidade, em quase toda a área
pan-mediterrânea (como demonstra o exemplo de Diógenes, o mais famoso entre os
cínicos), não se foge da impressão que eles sejam exibicionistas,
gostem de causar escândalo, cultivem ares de superioridade e desafiem
desnecessariamente seus opositores. Tudo isso longe da genuína ironia
socrática.
Tenho por mim que Helder Câmara, do
jeito que o conheci em Recife, pode ser considerado um irônico socrático
acabado, um praticante excepcional da ‘arte irônica’. Em suas falas e
intervenções, eu o reconheci sempre ‘driblando’. Como bom jogador de futebol,
controlava a bola, passava por dois ou três adversários, fingia entrar pela
direita e então passava pela esquerda, jogava a bola para trás, aparentemente a
perdia, mas na realidade a reencontrava livre de pernas adversas, e chutava
gol. O drible lhe estava inscrita no corpo, e seus ‘fingimentos’ do jogador
encontravam ressonância no público que ouvia suas palavras e acompanhava seus
gestos. A política lhe estava inscrita no corpo, ele agia a partir de uma comum
herança ancestral de passes e dribles, e isso o vinculava com seu público.
Sabemos que mesmo animais irracionais, quando acuados, sabem fingir, enganar,
fazer de conta, desviar a atenção, o que lhes pode ser fundamental na
preservação da vida, quando, por exemplo, são ameaçados de morte e se fingem
mortos ou dormindo, tentando, desse modo, desviar a atenção do agressor. Em
situação de inferioridade, a ‘ironia’ pode ser uma saída, um salvamento da
vida, tanto para animais irracionais como para humanos. Eles confirmam, por
meio de artimanhas ancestrais, a profunda intuição de Sócrates: a ironia, bem
entendida, é um recurso que a vida nos oferece, seja ela pre-racional ou
racional.
Os exemplos de ironia socrática se
espalham pela vida pública de Helder Câmara. Em 1964, ao chegar em Recife como
arcebispo nomeado apenas alguns dias após o golpemilitar, ele mantém um
relacionamento respeitoso, mesmo aparentemente amistoso, com os novos donos do poder.
Ao mesmo tempo, se entende com os setores progressistas da Diocese. Em sua
primeira fala, chegando em Recife, ele não menciona nenhuma autoridade, nem
eclesiástica, nem militar. Declara que vem se encontrar em Recife com
Cristo na pessoa de Zé, Antônio e Severino. Suas intervenções
inesperadas fazem com que o Presidente do Brasil se veja na obrigação de
escolher a dedo o General do Quarto Exército, sediado em Recife, entre os mais
‘diplomáticos’ do corpo militar, que saiba lidar com esse ‘bispinho’, que se
mete em tudo e é capaz de meter seu adversário em saia justa sem dar a mínima
impressão de querer travar um duelo. É que, do bispo, emana um poder ético que
faz falta aos militares. Os militares sabem que o Brasil está com Helder
Câmara, mas não confessam esse saber nem a si mesmos. Eles vivem acuados,
enquanto Helder irradia segurança. Eles estão presos, enquanto Helder demonstra
inconfundível liberdade. Eles sabem que o bispo não prega a revolução, que ele
não é comunista, não é subversivo. Enquanto eles mesmos, em muitos casos, não
acreditam no que dizem, Helder acredita no que diz. Ao longo dos ‘anos de
chumbo’, o bispo sabe que suas iniciativas só podem alcançar alguma eficiência
se ele souber driblar, se equilibrar na ‘corda bamba’.
O que escrevo aqui não se aplica só
ao relacionamento de Helder com o regime militar, mas também às suas avenças e
desavenças com a instituição católica (desse último ponto tratarei num próximo
blog), e mesmo com a religiosidade, frequentemente ambígua e perpassada por
tendências fundamentalistas, por parte do rebanho católico. Helder sabe: ou
consegue se equilibrar em cima da corda bamba jogando entre palavras de
acomodação e outras de repentina ousadia, ou perde a corda e cai na rede, como
um saltimbanco no circo. Sua dança é tão sutil que abre espaço para que seus
inimigos o apresentem, com grosseria, como ‘bispo vermelho’, ‘comunista vestido
de padre’, etc.
Esse jogo sutil faz com a o cronista
Nelson Rodrigues, por exemplo, divulgue incansavelmente a imagem de um Dom
Helder demagogo, vaidoso, vazio por dentro, sem fé nem religião, em textos
amplamente divulgados pelo jornal O Globo do Rio de Janeiro e mais tarde pela
Companhia das Letras de São Paulo (veja bibliografia: Nelson Rodrigues).
Cria-se uma imagem simplista do bispo, ainda hoje divulgada nos grandes meios
de comunicação do Brasil, como o jornal O Globo, a TV Globo, o Jornal do
Brasil, O Cruzeiro, O Estado de São Paulo, a Cadeia Associada de TV, etc.
Durante longos anos, jornalistas rivalizam entre si na procura de mentiras
acerca do bispo de Recife. Na biografia redigida por Piletti & Praxedes, na
página 385, se encontra uma lista de nomes feios a seu respeito, criados por
intelectuais de renome como Gustavo Corção, Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues, Davi
Nasser e Salomão Jorge.
Zildo Rocha, que trabalha
intensamente com Helder entre 1964 e 1970, ao descrever uma longa conversa que
tem com o bispo, já na véspera de sua aposentadoria, tem uma observação
interessante acerca da ironia do bispo. Assistindo, meio atônito, ao longo
monólogo teatral de seu amigo, ele – de repente – nele enxerga a figura de
‘Pedro Malazarte’, o ‘Pedro das Malas Artes’ (ou da ‘malandragem’) da tradição
luso-brasileira-moçambicana-angolana, que desde o século XIII habita numerosos contos,
ditos e alusões, Pedro Malazarte sempre leva a melhor. Ele despista prepotentes
por meio de suas artimanhas e engenhosidades. Imagem do homem comum que
restitui a justiça num mundo injusto, o amor num mundo sem amor, a alegria e a
festa. Engenhoso, sábio e sedutor, invencível em astúcias, inesgotável em
expedientes criativos, essa figura ultrapassa a cultura lusitana para encontrar
seu par no Til Eulenspiegel da Alemanha (século XIV), no Peer Gynt da Noruega,
em Lazarillo de Tormes da Espanha (que inspira o ‘Dom Quixote’ de Cervantes),
nos heróis do Contos dos Irmãos Grimm, no ‘Idiota’ de Dostoievski. Na figura de
João Grilo, renasce no ‘Auto da Compadecida’ de Ariano Suassuna. A ‘santa
malandragem’ é um procedimento que ultrapassa tempos, lugares, culturas e
línguas. Helder, como Pedro Malazarte, não acredita que a linha reta seja o
caminho mais curto entre dois pontos, pois sabe que o trajeto está cheio de
obstáculos e que precisa driblar, contornar, escolher um caminho que o
adversário desconhece. Nisso, ele se mostra legítimo herdeiro da cultura
cearense, que costuma praticar ‘jeitos’ que não se encontram nas análises de
Karl Marx. Helder malandro desenha um novo perfil de bispo católico, inventa um
modo original de fazer apostolado, sai do caminho batido à procura de novos
caminhos. Leia, se esse tema lhe interessar, o livro ‘A Invenção do Cotidiano’,
de Michel de Certeau (Vozes, Petrópolis, vol 1, 1994, 37-45).
Não me parece fora de propósito
evocar aqui, além de Sócrates, Paulo Freire e Michel de Certeau, o filósofo
linguista russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), que faz uma análise original da
‘santa malandragem’, que ele chama de carnavalização. Apresento aqui o
pensamento de Bakhtin em poucas palavras. Ele começa dizendo que, desde tempos
imemoráveis, o ser humano procura sair do labirinto de emoções, sentimentos,
impressões, imagens e afetos. Ele procura enveredar nos caminhos da razão. Mas
as confusões, causadas ao longo da história por preconceitos, falsas imagens e
impulsos não controlados, são tantas que o homem, desde suas primeiras origens,
embora tente diminuí-las na medida do possível, não consegue eliminá-las por
completo. Por isso, ele apela para uma figura emblemática que, na pluralidade
das culturas, ora é chamado filósofo, profeta, dervixe (no mundo iraniano), ora
monge, peregrino, ‘louco (sábio)’, ou ainda xamã, pajé, guru. Enfim, um ‘mestre
de vida’. A onipresença dessa figura mostra como é difícil sair do labirinto de
emoções e sentimentos e viver uma vida orientada pela razão. Mesmo nas nossas
culturas, o filósofo permanece uma figura estranha, o que demonstra que a
sabedoria é algo raro e difícil de ser alcançada. Por isso constitui uma chance
excepcional poder dialogar com um sábio de verdade, um homem ou uma mulher que
coloque a procura da sabedoria acima de tudo, mesmo de sua própria vida, como
Jesus e Sócrates (veja Bakhtin, M.M., The
Dialogic Imagination, Univ. of Texas Press, Austin, 1980).
Aqui entra Pedro Malazarte. Não é um herói. Não tem seguidores, mas
companheiros, ‘conspiradores’. Situa-se em paridade com quem admira seus feitos
e está inserido num círculo dialogal. Mesmo quando está em cena, ele acena para
os assistentes (ouvintes, leitores) na plateia. Suscita a participação. Há
os que, no mundo, só enxergam heróis, patriotas e nacionalistas, que glorificam
a guerra, a espada, o medo, a morte e a religião como sustentáculo da vida
social. Heróis que são épicos por natureza. De outro lado, há os que dialogam e
negociam, conversam e mantêm um relacionamento entre iguais. Vivem na
precariedade, convidam o interlocutor a entrar na discussão e possivelmente
colaborar na construção de uma convivência humana mais sensata. Enfim,
personalidades como Helder só se tornam inteligíveis quando se toma consciência
de que elas apelam para a participação e a responsabilidade.
Nem todos os participantes do
Encontro de Irmãos captam e valorizam as artimanhas do bispo Helder Câmara.
Muitos não aprendem a lição da ironia, permanecem frágeis e até indefesos
diante do poder avassalador da sociedade estabelecida, que incansavelmente
propaga mentiras. Pois se espalha tanta mentira acerca de Helder, que ele
finalmente arrisca ser mal entendido dentro da própria igreja católica. Seja
como for, a partir de 190, ele se encontra sempre mais, dentro de seu país
natal, numa posição isolada, perde o apoio
público, a consideração pública, mesmo a segurança da vida.
Muitos não
conseguem se desvincular do clássico projeto civilizador, que,
desde não sei quantos milênios, favorece as qualidades humanas que facilitem a
convivência pacífica em sociedade e rejeita procedimentos que subvertam
sentidos programados e façam com que a autoridade civilizadora perca sua
segurança. A autoridade estabelecida rejeita a ironia, cujo questionamento
incomoda o universo da solenidade, da polidez, da cortesia, da sisudez, que é o
universo da civilização. A ironia não é bem-vinda nas cortes, nos palácios, nas
igrejas, nos órgãos corporativos, no Estado, pois suas arestas arranham o
prestígio e o poder, desestabilizam os que detêm privilégios, não colaboram com
‘ordem e progresso’. Para os que defendem a civilização, a ironia não tem
sentido. Ela lhes parece fortuita e bandoleira. Na verdade, ela é corrosiva,
pois elimina a subserviência e cria pessoas inteligentes e livres. Por isso, o
‘status quo’ tende a ignorar ou pelo menos ocultar a ironia.
Mas aqueles que, embora vivam
submetidos ao poder do Estado, aprenderam com a pedagogia libertadora de
pessoas como Helder Câmara, compreendem que a ironia é necessária. Basta uma
brecha que permita a eclosão do livre pensar e eles explodem em riso,
brincadeira, festa, alegria e carnaval (eis o tema de Bakhtin). O riso irônico
acorda na pessoa aquela criança que, no conto de Andersen, grita: ‘o rei está
nu’. Só ela, em toda a multidão, vê que o rei está nu. Os demais não enxergam
nada, pois não são livres. Só a criança é suficientemente livre para rir quando
lhe apraz. Regimes políticos de cara tensa e punho fechado, braço levantado e
bandeira erguida não são livres. São perigosos, mas não são livres. Escondem o
‘rei que está nu’. Depois de visitar Adolfo Hitler em 1938, o escritor
americano Henry Miller anota em seu diário: ‘Aqui as coisas andam mal. O homem
não ri’. Hoje, em nossas culturas, a ironia é uma das qualidades humanas menos
definidas e menos valorizadas, o que não é um bom sinal. Vigora uma censura
largamente inconsciente, que repousa sobre mensagens mentirosas ou ambíguas que
recebemos desde a infância e que vão na direção de desvalorizar a ironia e nos
integrar na sociedade oficial.
É com astúcia que Helder Câmara
planeja o Encontro de Irmãos. Aparentemente em perfeita sintonia com o plano
formulado pelo Cardeal Leme em sua famosa Pastoral de 1917, ou seja, com um
projeto que intenciona fortalecer o instituto católico, ele planeja um
‘Encontro de Irmãos’ que não tem nada a ver com o fortalecimento da instituição
católica ou de qualquer outra instituição. Seu foco é a conquista de dignidade,
igualdade e liberdade por parte de populações tradicionalmente marginalizadas.
O bispo pratica magistralmente um jogo de esconderijo ‘irônico’ ao deixar de
explicitar suas diferenças com o plano do Cardeal Sebastião Leme e com outros
bispos que seguem na mesma linha. Enquanto dá a impressão de estar em perfeita
sintonia com a tradição eclesiástica, ele entrega a Bíblia ao povo das
comunidades.
Dialogar.
Numa fala em 23 de setembro de 1976,
Helder Câmara explica a seu modo o método Encontro de Irmãos: enquanto,
no mundo inteiro, os governos não acreditarem na capacidade do povo e tudo
planejarem nos gabinetes, tudo decidirem com técnicos e supertécnicos, o povo
ficará marginalizado. Mas os governos serão os mais prejudicados. Tudo que é
resolvido para o povo sem o povo é artificial, não funciona.
Palavras de peso: Tudo que é
resolvido para o povo sem o povo é artificial, não funciona.Que não só se
aplicam ao governo do estado, mas igualmente ao governo da igreja. Quando
Helder afirma que uma igreja que funciona para o povo sem o povo,
ele, por estranho que isso possa parecer, acena para o sentido original do
termo ‘ekklèsia’, tal qual a encontramos na Primeira Carta de Paulo aos
Tessalonicenses (49 dC).
A história é conhecida: naquele ano,
Paulo está em Corinto, impossibilitado de viajar a Tessalônica onde ele, com a
equipe antioquena (ele, Silvano e Timóteo), acaba de fazer um bom trabalho. Ele
fica preocupado, pois teve de fugir da cidade e não sabe ao certo se os novos
adeptos tessalonicenses aguentarão as perseguições. Mas logo chega Timóteo com
boas notícias: o grupo de Tessalônica está firme na fé. Satisfeito, Paulo
escreve uma carta de encorajamento, sem grandes pretensões literárias. Sua
alegria provém do fato que os pequenos núcleos da Macedônia começam a imitar
‘os núcleos de Deus na Judéia, provenientes de Jesus, o Ungido’ (3, 14).
Estamos diante de igrejas que não funcionam ‘para o povo’, mas são formadas
pelo povo. Como se imaginar a vida concreta desses ‘núcleos’? O biblista
americano Richard Ascough (veja no Google), que estudou a fundo essa questão,
conta que provavelmente aconteceu o seguinte: nos poucos dias em que a equipe
dos missionários, vindos de Antioquia na Síria, permaneceu em Tessalônica, uma
associação profissional acolheu em bloco as propostas de Paulo, que encontramos
detalhadamente na referida Carta (veja Ascough, R.S., The Thessalonian Christian Community as a
Voluntary Association, em: Journal of Biblical Literature, 119/2, 2000,
311-328). Estamos aqui diante de uma ekklèsia que, na realidade, é uma
associação voluntária. Nela, os temas se discutem em grupo. Assim nas seguintes
palavras da Primeira Carta aos Tessalonicenses:
Examinem todas as coisas
E só retenham o que é belo (5, 16-22).
‘Examinem todas as coisas’, ou seja, ‘discutam,
dialoguem’. A igreja não é monóloga, ela é diáloga. As pessoas se reúnem
em ‘ekklèsia’ para dialogar, trocar opiniões, aprofundar determinadas lições,
tirar dúvidas, ‘examinar as coisas’. A igreja consiste emcomunidades
dialogantes. Assim como Sócrates forma em seu redor, como consequência lógica
do processo educacional por ele protagonizado, uma ‘comunidade de base’, do
mesmo modo Helder Câmara forma sua comunidade de base chamada ‘Encontro de
Irmãos’. A lógica é a mesma. E assim como Sócrates dialoga com seus discípulos
(como se verifica em seus famosos diálogos, alguns deles recolhidos por seu
discípulo Platão [veja Platão, Diálogos, São Paulo, Hemus Editora,1981], para
neles fortalecer e eventualmente concretizar as intuições adquiridas durante os
dois passos anteriores do processo educacional, o ‘saber’ e o ‘agir’), do mesmo
modo Helder dialoga com seus ‘irmãos’ (e irmãs) no programa radiofônico ‘Um
olhar sobre a Cidade’. Nele, ele não ‘prega’ o evangelho, mas descobre o
evangelho no saber e no agir de seu povo, como canta o poeta popular Jorge de
Lima num texto que Helder, certa feita, chega a recitar diante do Papa Paulo
VI:
Eu acredito que o mundo será melhor
Quando o menor que padece
Acreditar no menor.
Aqui reencontramos Paulo Freire, que
não cansa em repetir que viver significa entrar em campo interativo, em
diálogo, não cansa em dizer que a Comunidade de Base não é uma escola
tradicional, em que o professor fala e os alunos escutam. A Comunidade de Base
parte da experiência da vida de cada um(a) dos(das) participantes. Todos e
todas têm uma experiência de vida e é a partir dessa experiência que se
dialoga. Nisso vai um trabalho lento e por vezes penoso, no sentido de
reconsideração e reavaliação de informações registradas na mente desde o início
da vida, já que algumas delas costumam resistir tenazmente à mudança.
Nesse contexto, a leitura bíblica é
de teor ‘performativo’, não ‘informativo’. A Bíblia não foi escrita para
informar, mas para incentivar pessoas a agir. Eis a intuição do sacerdote
Esdras, já no século VI aC. Ele manda seus ‘letrados’ às aldeias para recolher
histórias que possam dar um novo saber e um novo agir ao povo. Assim nasce, por
exemplo, a história da fuga do Egito, por parte de hebreus escravizados, sob o
comando de Moisés (Livro Êxodo). Uma história pensada para suscitar nas pessoas
ações em prol da libertação. Jesus entende perfeitamente o processo. Ele diz:
‘quem ouve minhas palavras sem colocá-las em prática é como o bobo que constrói
sua casa sobre a areia’ (Mt 7, 26). A Bíblia serve para libertar, pois nela se
revela um Deus que foge ao esquema tradicional, não fica sentado no Trono
Celeste, mas mostra interesse pela sorte de pessoas que vivem na miséria:
Eu vi a miséria de meu povo,
ouvi o clamor dele,
conheço suas angústias.
Por isso desci a fim de libertá-lo
da mão dos egípcios (Ex 3, 7-8).
Vale evocar aqui o chamado ‘método
Cardijn’, também chamado ‘método ver, julgar, agir’, que o padre Joseph
Cardijn, fundador da JOC (Juventude Operária Católica), propaga intensivamente
nos anos 1930-50 e que entra posteriormente na programação das Comunidades de
Base. O método, que consiste em, primeiramente, ‘ver a realidade’, em seguida
‘refletir sobre ela à luz da Bíblia’ e finalmente ‘agir na sociedade’, se
divulga amplamente e durante muitos anos em ambientes de Ação Católica, antes
de desaguar na metodologia das Comunidades de Base. É um método revolucionário,
no sentido que substitui a tradicional fundamentação de uma ação cristã a
partir de um discurso religioso por uma motivação que se origina na percepção
da realidade cultural, econômica, social e política em que se vive. O método da
Comunidade de Base é, sem dúvida, é secularizante, no sentido que a dinamização
do agir não provém mais da transmissão de mitos teológico-religiosos, mas da
observação ‘secular’ de fatos concretos, à luz da Bíblia. Ele postula uma
reconsideração da religião.
Minha exposição pode dar a impressão
de ser teórica demais e se distanciar de uma descrição da realidade concreta do
Encontro de Irmãos. Claro: nem o bispo de Recife, nem os monitores do Encontro
de Irmãos falam em ‘método socrático’, ‘maiêutica’, ironia, coisa do gênero.
Eles falam em ‘pobres evangelizando pobres’. Mesmo assim, penso que não estou
forçando a nota quando aponto paralelismo entre o ‘método socrático’ e o método
posto em prática no Encontro de Irmãos. Assim como Sócrates parte da ideia que
o saber já está presente na mente das pessoas, mas não se revela, do mesmo modo
o monitor do Encontro de Irmãos se sabe que o evangelho, afinal, já vive na
mente humana, embora de modo latente. Sem usar expressões de Padres da Igreja
do século III (os alexandrinos), ele sabe que ‘alma humana é naturalmente cristã’
(‘Anima naturaliter christiana’), e que, mesmo em pessoas que não conhecem os
evangelhos, existe uma ‘preparação evangélica’ (‘preparatio evangelica’), ou
seja, uma disposição natural no sentido de acolher o evangelho. Como o bebê
escondido no ventre da mãe, o evangelho vive escondido na mente humana, antes e
mesmo independentemente da audição de textos evangélicos. E enquanto Sócrates
recorre à imagem da parteira para exemplificar o processo educacional, Jesus
recorre à imagem do Reino de Deus:
Vocês têm sorte, vocês pobres!
O Reino de Deus é de vocês.
Vocês têm sorte, vocês que têm fome!
Vocês serão saciados.
Vocês têm sorte, vocês que choram!
Pois vocês vão rir
Que a alegria os faça dançar! (Lc 6, 20-23).
Os pobres já vivem no Reino de Deus,
caso não se conformem com sua pobreza, sua fome e seu abatimento, caso estejam
dispostos a superar a situação em que se encontram. Esses pobres das
bem-aventuranças têm uma ‘consciência socrática’. Eles desejam se libertar e
nisso podem contar com o apoio de Deus (‘o reino de Deus é de vocês’). São
pessoas que ‘sabem que sabem’ e, por conseguinte, constroem sua casa sobre a
rocha, com o texto de Mateus indica. E, assim como Sócrates orienta seus
discípulos a praticar a ‘santa malandragem’ (a ironia), do mesmo modo Jesus
aconselha que seus discípulos ajam com astúcia:
Vocês são ovelhas que envio em meio a
lobos.
Sejam, pois, astuciosos como a
serpente
E cândidos como a pomba (Mt 10, 16).
Concluindo.
Escrevi acima que Helder Câmara, por
meandros irônicos, consegue entregar a Bíblia ao povo das comunidades em meio a
situações muito difíceis. Ora, isso eleva a ação do bispo acima das
vicissitudes do momento e lhe confere uma dimensão universal. Pois, assim como
o método socrático inverte o sinal da escravidão em Atenas, o método do
Encontro de Irmãos inverte o sentido da escravidão num país como o Brasil. É
por meio da leitura bíblica que a Comunidade de Base inverte o sinal da
escravidão no Brasil. Num país secularmente construído pelo trabalho de milhões
de escravos, os participantes do Encontro de Irmãos chegam a compreender que os
escravos fazem o Brasil e que nisso está a dignidade dos
pobres. Eles são os construtores do Brasil. A leitura bíblica inverte a
narrativas de Gilberto Freyre e Oliveira Viana acerca da ‘democracia racial’,
pois por meio dela se aprende a não enxergar o país a partir da Casa Grande,
mas a partir da Senzala. Logo se percebe que a escravidão, em vez de ser o
problema, é a solução. É o caminho histórico, é por ela que se forma o país.
Repetindo as palavras de Helder Câmara em 1976: enquanto, no mundo
inteiro, os governos não acreditarem na capacidade do povo e tudo planejarem
nos gabinetes, tudo decidirem com técnicos e supertécnicos, o povo ficará
marginalizado. Tudo que é resolvido para o povo sem o povo é artificial, não
funciona. Não é a Casa Grande que faz o país, é a Senzala. Eis,
talvez, a lição suprema de iniciativas como o Encontro de Irmãos.
Eduardo Hoornaert
foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão
de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está
estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois
primeiros séculos.
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