Por Marcelo
Barros
Na véspera do Natal, nos mosteiros, se
repete um refrão, baseado no livro do Êxodo: “Hoje, todos saberão que o Senhor virá e amanhã poderão ver a sua
glória”. Parece irreal cantar: “Hoje ainda
poderá ser destruída a iniquidade do mundo. Amanhã reinará sobre nós o
Salvador”.
No mundo atual, a iniquidade do mundo
se tornou mais escandalosa. A desigualdade social se multiplica. Milhões de
pessoas são excluídas do trabalho digno. Fome e miséria aumentam. Diariamente,
milhares de crianças morrem por não terem acesso à água potável. Além disso, a
praga do armamentismo ameaça a própria segurança do planeta.
O evangelho do Natal nos assegura: “A Palavra divina se faz carne em nós e em
todas as criaturas” (Jo 1, 14). Essa palavra ressoa, hoje, no grito surdo
da mãe Terra, agredida e ameaçada em suas condições de vida. Ecoa nos campos
contaminados pelos agrotóxicos. É o grito sufocado da irmã Água transformada em
mercadoria e privatizada pelas Coca-cola e Nestlé da vida. Essa Palavra de dor
e de resistência se faz carne e é acolhida e respondida na luta de resistência
dos índios, na caminhada dos lavradores sem-terra e dos pequenos agricultores.
Cantar que amanhã será destruída a
iniquidade do mundo é uma profecia que nos anima na esperança. E essa esperança
vai além das fronteiras da fé cristã. É algo que diz respeito a toda a
humanidade. Ao ser palavra de amor para toda a humanidade, essa mensagem de
Natal nos chama a sermos cada vez mais humanos e cuidadores/as do planeta. Isso
significa nos abrir cada vez mais aos outros. Implica em priorizar o diálogo, a
convivência; reconhecer a dignidade inviolável das pessoas e de todo ser vivo. Quem
não é capaz de aceitar o diferente não sabe o que é Natal.
Jesus de Nazaré se revelou como homem,
mas acolhe também a dimensão divina do feminino. Revela que Deus é Pai e Mãe e
permite que o chamemos de Ele ou Ela. Na realidade do nosso mundo tão ferido
por desigualdades sociais, raciais e de gênero, o Natal nos revela os rostos plurais
do Espírito Divino. Faz-nos descobrir cada ser humano, homem ou mulher, homo,
hetero, ou transexual, como imagens do amor divino.
Desde criança, Jesus quis ser
encontrado não pelos religiosos de Jerusalém e sim pelos pastores do campo.
Manifestou-se não no templo e sim na manjedoura de Belém. Assim, hoje, o
Espírito, Ventania do Amor Divino, quer
que o encontremos de formas diversas, desde que seja na realidade da pobreza e
da marginalização social. A Palavra feita carne no Natal nos faz reconhecer a
presença divina nas manifestações de todas as culturas e religiões. Aqui no
Brasil, o Natal nos compromete na defesa diária e intransigente das comunidades
indígenas e afrodescendentes, tanto na sua luta sagrada pela terra e pelo
direito a viver suas culturas e expressões religiosas. Mais do que isso, nos faz
reconhecer e valorizar a permanente encarnação do Espírito Divino nos terreiros
afro e nas ocas indígenas.
Vamos encontrá-lo nas tradições dos Orixás.
Ele se revela nos Espíritos da Umbanda e nos Encantados indígenas. Vem dançar
com seus filhos e filhas índios e negros para confirmá-los na sua resistência
profética e dar a toda humanidade a esperança de um mundo renovado.
Hoje, o cântico dos anjos de Belém se
torna o cantar discreto e misterioso que o Xamã ianomâmi David Kopenawa escuta
dos Xapiris da floresta. Toma a forma do Toré dos índios do Nordeste. São os novos cânticos do
Natal da mãe Terra e da natureza ferida que renovam o universo de amor e de
vida.
O mundo inteiro se transforma em um
imenso presépio. Não do Menino Jesus que, hoje, já não é mais menino e sim o
Cristo Ressuscitado que nos vêm pelo Espírito. É essa energia materna de amor
que cobriu Maria com sua sombra e, hoje, fecunda o universo com seu amor e sua
força libertadora. Feliz Natal para você e para todos os seus entes queridos.
MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros
publicados, dos quais “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da
Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário