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quinta-feira, 26 de setembro de 2019

DROGAS E RELIGIÃO



Frei Betto

        O uso de alucinógenos e outros aditivos químicos teve início historicamente em rituais religiosos, como ainda hoje ocorre com o  ayahuasca, utilizado  pelos adeptos do Santo Daime e da União do Vegetal.
        Na descrição que o evangelista Mateus faz do nascimento de Jesus, consta que os reis magos (astrólogos?) levaram de presente ao Messias ouro, símbolo da realeza; incenso, da espiritualidade; e mirra, do profetismo.
        O incenso, utilizado inicialmente no antigo Egito e extraído do tronco de árvores aromáticas, é uma “droga” que reduz a ansiedade e o apetite. Ao contrário do que muitos pensam, não é originário da Índia, e sim da Somália, da Etiópia e das montanhas do sul da Arábia Saudita.
        A mirra, originária da África tropical, é uma resina obtida dos arbustos do gênero Commiphora. Seu efeito analgésico se compara ao da morfina. No Evangelho de Marcos, aparece, mesclada ao vinho, oferecida a Jesus torturado antes de o crucificarem; ele rejeitou a bebida.
        Hoje, as substâncias químicas obtidas de plantas superaram o âmbito religioso e terapêutico, e se tornaram iscas à dependência química com suas nefastas consequências, como é o caso da coca, cuja folha é mascada pelos indígenas andinos para facilitar a respiração em regiões de oxigenação rarefeita.
        Há ainda a produção de drogas sintéticas e o “doctor shopping”, o médico que produz poderosos analgésicos capazes de provocar a morte de seus pacientes, como foram os casos de Michael Jackson e Whitney Houston.
        A repressão ao narcotráfico não mostra resultados satisfatórios. As famílias dos dependentes, desesperadas, buscam internações e terapias “miraculosas”.
        Médicos, remédios e terapias podem, sim, ajudar na recuperação de dependentes. O fundamental, porém, é o amor da família e dos amigos – o que não é nada fácil nessa sociedade consumista, individualista, na qual o “drogado” representa uma ameaça e um estorvo.
        A religião, adotada em algumas comunidades terapêuticas, pode favorecer a recuperação, desde que infunda no dependente um novo sentido à sua vida. Eis, aliás, o que evitou que a minha geração, aquela que tinha 20 anos na década de 1960, entrasse de cabeça nas drogas: éramos viciados em utopia. Nossa “viagem” consistia em derrubar a ditadura e mudar o mundo.
        Na questão das drogas há que distinguir segurança pública de saúde pública. Sou favorável à descriminalização dos usuários e penalização dos traficantes. Os usuários só deveriam ser afastados do convívio social se representarem ameaça à sociedade. Nesse caso, precisariam ser encaminhados a tratamento, e não a encarceramento.
        A religião nos mergulha no universo onírico, pois nos faz emergir da realidade objetiva e nos introduz na esfera do transcendente, imprimindo sacralidade à nossa existência. Mais do que um catálogo de crenças, ela nos permite experimentar Deus. Daí a etimologia, nos re-liga com Aquele que nos criou e nos ama, e no qual haveremos de desembocar ao atingir o limite da vida.
        Ocorre que, graças ao neoliberalismo e seu nefasto “fim da história” - uma grave ofensa à esperança -, e às novas tecnologias eletrônicas, às quais transferimos o universo onírico, já quase não temos utopias libertárias nem o idealismo altruísta de um mundo melhor. Queremos melhorar a nossa vida, a de nossa família, não a do país e da humanidade.
        Esse buraco no peito abre, nos jovens, o apetite às drogas. Todo “drogado” é um místico em potencial, alguém que descobriu o que deveria ser óbvio a todos: a felicidade está dentro, e não fora da gente. O equívoco é buscá-la pela porta do absurdo e não a do Absoluto.
        Um pouco mais de espiritualidade cultivada nas famílias, sobretudo em crianças e jovens, e não teríamos tanta vulnerabilidade à sedução das drogas.
        Enfim, incenso faz bem à alma.

Frei Betto é escritor, autor de “O vencedor” (Ática), romance sobre drogas, entre outros livros.


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