Por Eduardo Hoornaert
Dois sacerdotes que atuam na Paraíba,
Ernando Teixeira e José Floren, lançaram recentemente um livro, intitulado
‘Padre Ibiapina por nossos bispos, Textos episcopais’ (Ideia Editora, João
Pessoa, 2019, ISBN 978 85 463 0418 9). Um livro que, em sua modéstia, é marca
de uma passagem histórica. Quatorze bispos, na maioria nordestinos, redescobrem
Ibiapina e, com ele, as fundas raízes da tradição católica neste país. O que
hoje é um vislumbre, pode ser amanhã alavanca de grandes transformações.
A importância da redescoberta de
Ibiapina e, portanto, dos quatorze testemunhos episcopais reunidos nesse livro,
se realça melhor quando situamos essa figura diante de um amplo painel
histórico.
Duas forças históricas modelam as
religiões, desde tempos imemoráveis: a devoção (a fé) e a instituição. A primeira
na origem, a segunda como sustentáculo indispensável. A instituição, bem
compreendida, é um serviço prestado à devoção. Devoção e instituição se
apresentam como forças vinculadas, interdependentes, sendo que uma religião
funciona a contento quando ambas as forças constituem uma só engrenagem.
Acontece que a história das religiões
está repleta de casos em que a instituição desvia a força criativa da devoção
para fins interesseiros, seja para fortalecer o poder do imperador do momento,
seja para beneficiar classes privilegiadas, seja ainda para arregimentar o povo
em guerras santas.
A história da religião cristã não
escapa a esse processo de apropriação da devoção pelas forças da instituição.
Um caso flagrante acontece no século IV, na chamada ‘reviravolta
constantiniana’. Na época, muitos líderes de comunidades cristãs se deixam
seduzir pelos modos em que a religião se organiza no Império Romano. A religião
oficial romana consiste na drenagem do dinamismo espiritual dos povos
subjugados para fins políticos, ao apresentar o Imperador como uma figura
divina a merecer a devoção dos povos. Um péssimo exemplo. Infelizmente, é
exatamente a imagem do Imperador romano que impacta os bispos reunidos na
Capital do Império em torno de Constantino, a celebrar o Concílio de Niceia em
325. Os bispos cometem o equívoco de apresentar o modelo romano em termos de
organização religiosa como exemplo a ser seguido nas comunidades cristãs.
Imitando o modelo corporativo sacerdotal do Império, montam um sistema
eclesiástico de tipo corporativo, a administrar e controlar o universo
devocional cristão. Doravante, a ‘igreja devota’ se vê na contingência de se
acomodar a essa instituição hegemônica, sob pena de sofrer a pecha de heresia.
As consequências dessa guinada
história se fazem sentir até hoje. O sacerdote se apropria do universo devoto,
marginaliza o antigo articulador das comunidades, reserva para si a
administração do sagrado. Os sacramentos, sinais do amor de Deus, se
transformam em ritos obrigatórios. O batismo, a missa dominical, a confissão
anual, o matrimônio, tudo se torna obrigatório. O clero alcança o topo do poder
e o devoto se torna seu subalterno. Um ‘devoto do santo’ que se recusa a
ser um ‘fiel do padre’, é expulso e perseguido como herege. A paróquia pratica
concretamente essa conversão de devoto em fiel. O povo torna-se ‘objeto’ da
‘pastoral’ eclesiástica. Os que não são batizados, não vão à missa nos
domingos, não são casados na igreja, são discriminados e, com o tempo, expulsos
da comunidade. Forma-se um universo católico, que na Europa Ocidental, ou seja,
no centro do sistema eclesiástico, funciona a contento durante longos séculos.
Nas periferias do sistema, contudo,
as coisas são diferentes. A partir do século XVI, a igreja católica se expande
pelo mundo ao acompanhar e sustentar a colonização europeia na África e na
América, assim como em grandes partes da Ásia. Criam-se periferias em que o
programa paroquial não consegue funcionar como planejado. Nelas, de modo
natural, sem planejamento, a igreja devota emerge como força de aglutinação de
populações. Pois, como escrevi acima, a devoção constitui a base da religião.
Ao integrar energias espirituais provenientes da Europa a energias provenientes
de povos originários e de escravos africanos, a devoção se torna a grande força
civilizadora e humanizadora das periferias colonizadas. Funciona uma igreja de
muito santo, pouco padre,
muita promessa, pouca missa,
conforme a feliz caracterização do
sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira. Funciona uma igreja devota, longe de
padre, de bispo, de papa. Ao longo de pelo menos três séculos, nenhum papa se
intromete em assuntos de igreja na América. Nenhum documento papal menciona o
continente entre 1537 (Bula ‘Sublimis Deus’ do Papa Paulo III) e 1839 (Carta
Apostólica ‘In Supremo Apostolatus’ do Papa Gregório XVI). A organização da
igreja católica na América fica nas mãos de monarcas ibéricos, que praticamente
se limitam a nomear os bispos (o Padroado) e não interferem em assuntos
pastorais. Desse modo, devoções portuguesas e espanholas, fertilizadas por
espiritualidades da terra e dos
imigrantes africanos, configuram um cristianismo específico, longe das análises
e dos planos pastorais. Comete uma temeridade quem considera essas devoções
desprovidas de valores cristãos. Se vivenciam modos de vida que cultivam – por
vezes de modo surpreendente – valores evangélicos, como fraternidade,
fidelidade, respeito, tolerância, preservação da natureza, senso de beleza,
atitude saudável diante do sexo, além de extraordinária capacidade de comunicação.
É diante de painel histórico dessa
amplitude que a figura do Padre Ibiapina ganha sua verdadeira dimensão. Ele é
expoente da igreja devota numa periferia do sistema católico, os sertões
nordestinos do Brasil. Não pratica uma pastoral sacramentalista e/ou
penitencial. Isso se percebe quando comparamos Padre Ibiapina com outro
missionário, que exerce forte impacto nos povos católicos do Nordeste numa
época mais recente: o capuchinho italiano Frei Damião de Bozzano (1898-1997).
As missões populares do Frei desembocam invariavelmente em confissões,
comunhões e procissões penitenciais. Frei Damião é ‘tridentino’, ou seja, segue
basicamente as orientações sacramentalistas e penitenciais do Concílio de
Trento, celebrado no século XVI. Os Frades capuchinhos italianos percorrem
incansavelmente os sertões e têm na figura de Frei Apolônio da Toddi um de seus
mais marcantes expoentes. Enquanto se referem a planos pastorais concebidos no
século XVI, o Padre Ibiapina segue uma tradição que remonta à origens do
movimento de Jesus. Ele trabalha com temas originais: criação divina, graça
operante, devoção ativa, luta pela realização do reino de Deus na terra.
Enquanto Frei Damião trabalha com o tema do ‘pecado original’, o Padre Ibiapina
segue o tema da ‘graça original’. Enquanto as missões de Frei Damião desembocam
no sacramento, as do Padre Ibiapina desembocam no mutirão, ou seja, na
colaboração de toda a comunidade.
Com o Padre Ibiapina, o dinamismo da
igreja devota resulta em engajamentos no plano social, em projetos que visam
melhorar a vida de populações dos sertões nordestinos. Animado por uma
espiritualidade que se materializa em construção de igrejas e cemitérios,
açudes e canais de adução de água, em fundações de ‘Casas de Caridade’,
Ibiapina continua nos desafiando.
Ao andar pelos sertões, inicialmente
para um serviço de ‘primeiros socorros’ (ele inicia suas incursões nos sertões
com um trabalho no sentido de combater um surto de cólera no interior de
Pernambuco) Ibiapina descobre o dinamismo da devoção, um tesouro escondido. Ele
passa a enxergar o que muitos não conseguem ver, pois anda além das
fronteiras da europeização da cultura brasileira, que atinge em primeiro
lugar as cidades, fora da ‘romanização’ da igreja católica, igualmente ativada
nas cidades. É andando pelos sertões que Ibiapina percebe que o Brasil está num
processo acelerado de perda de memória. Isso é trágico. A escritora francesa
Simone Weil escreve: ‘o enraizamento talvez seja a necessidade mais importante
e mais negligenciada da alma humana’. Podemos acrescentar: ‘e de um povo’. Um
povo que perde suas raízes se torna facilmente vítima daqueles que cobiçam as
riquezas do país. Por onde penetra, o dinheiro destrói raízes, desativa
estímulos. O Moloch do dinheiro engole a memória do povo.
É diante desse quadro que se
compreende a importância desse livro, a recolher testemunhos de quatorze
bispos. Ao descobrir o Padre Ibiapina, eles descobrem o Brasil. Superam o
silenciamento, o esquecimento, o desenraizamento, que atualmente afetam o país.
Ultrapassam a romanização e europeização da Igreja Católica no Brasil e reatam
laços com o Brasil profundo, o Brasil dos devotos, das devotas. Prestam atenção
ao que é realmente importante. Ao descobrir Ibiapina, os bispos descobrem um
povo que peregrina a Santa Fé em Arara, que faz promessas com o Padre Ibiapina
e venera em casa sua imagem.
Eles sabem, contudo, que o trabalho
de ressurgimento está apenas começando, sabem que as novas gerações podem
aprender muito em termos de sensibilidade social e disponibilidade, no sentido
de colaborar com a libertação do povo nordestino das amarras da escravidão e do
abandono. Nesse sentido, Ibiapina é capaz de despertar energias onde menos se
espera. Quem não se admira pelo fato que, em tempos de Ibiapina, esposas de proprietários,
de fazendeiros, habituadas a contemplar passivamente a miséria do povo em seu
redor, se sensibilizam pelo apelo daquele padre que percorre as estradas e se
prontificam a ajudá-lo a montar suas ‘Casas de Caridade’ e mesmo - em
determinados casos - colaboram na administração e mesmo na direção dessas
instituições, que não só pretendem ser de amparo aos pobres, mas positivamente
de educação e treinamento de moças para a vida matrimonial? Pois, nas Casas de
Caridade não só se acolhem crianças ‘enjeitadas’ (rejeitadas, órfãs,
‘oferecidas’), mas igualmente moças desejosas de conseguir um bom casamento,
numa sociedade em que a educação feminina é muito deficiente. As ‘pensionistas’
aprendem a ler, escrever, contar, cozinhar, fiar, tecer algodão, costurar,
bordar, fazer sapatos, plantar sementes em tempo certo, fazer chapéu de palha,
tecer rede. Conhecimentos e habilidades que as condicionam a serem ‘prendadas’,
‘dotadas’, preparadas para um bom casamento e para a formação de uma boa
família, onde se preza o trabalho e a honestidade. Se essas moças trabalham
bem, elas até recebem, por parte da instituição, um ‘dote’ na hora do
casamento. Só não aprendem a datilografar, a fazer escrituração mercantil, a
falar inglês, pois o Padre é terminantemente contra a mercantilização da vida.
Nem aprendem a enfeitar bolos açucarados, como se faz nas Casas Grandes.
O tempo dirá se as sementes, aqui
espalhadas pelos bispos, vão germinar, crescer e evoluir. Uma coisa me parece
certo: trata-se de um processo que pede tempo. Isso eu pude verificar
pessoalmente. Nos idos de 1960, quando ensinava História da Igreja no Seminário
de João Pessoa, constatei que meus alunos não conheciam nem os nomes de figuras
como Antônio Conselheiro ou Ibiapina. De Padre Cícero, eles tinham uma ideia
vaga e fundamentalmente negativa. Lembro-me que, certa vez, lhes dei uma tarefa
de férias: ‘procurem informações acerca do Padre Cícero’. Eles voltaram me
dizendo que falaram com seus vigários e sempre receberam a mesma resposta: ‘O
Padre Cícero é persona non grata’. Como, ao mesmo tempo, eu era
vigário de um bairro periférico de João Pessoa, estranhei o fato que o povo –
esse sim – guardava a memória de Padre Cícero com carinho. Encontrava, colado
na parte interior das portas (de duas bandas), um santinho com os dizeres
‘Padre Cícero, abençoe esta casa’. Finalmente, em 1964, resolvi viajar a
Juazeiro do Norte e foi ali que recebi, das mãos da Professora Amália Xavier,
um manuscrito intitulado ‘Crônica das Casas de Caridade do Padre Ibiapina’. Assim
me encontrei, pela primeira vez, com o Padre Ibiapina. Tentei, durante vinte
anos, encontrar uma editora que se dispusesse a publicar o manuscrito, até que
a Editora Loyola dos jesuítas, de São Paulo, aceitasse publicar a ‘Crônica das
Casas de Caridade’, em 1981. Houve uma segunda edição pelo Museu do Ceará
(Fortaleza), em 2006. Felizmente, dois anos depois o Padre Ernando Teixeira nos
brindou com uma edição que se pode considerar definitiva, com notas e
comentários, sob o título ‘A missão ibiapina’ (Gráfica Editora Berthier, Passo
Fundo, 2008).
Um tema importante, relacionado com a
atuação de Ibiapina, diz respeito a sua relação com o sistema escravocrata,
então em vigor. Gilberto Freyre, o famoso autor de ‘Casa Grande e Senzala’,
compara, num artigo publicado em 1942, o modo de se viver nas Casas de Caridade
e nas Casas Grandes do tempo (veja pp. 116-117 do livro que estou aqui
comentando). Ele constata: as Casas de Caridade não funcionam por meio de
trabalho escravo.
Efetivamente, se é verdade que uma
Casa de Caridade lembra, em termos de construção, a Casa Grande da época e,
além disso, é frequentemente administrada por mulheres da artistocracia,
provenientes da Casa Grande, nela não circulam escravos e escravas.
É verdade que as pensionistas são
secundadas por auxiliares de serviços gerais (mulheres do trabalho). Mas
estas, nas horas vagas, recebem aulas de doutrina e leitura. Após uma
permanência de cinco anos nas Casas de Caridade, elas podem optar entre a vida
religiosa (irmãs de caridade) e o casamento, recebendo aí o mesmo tratamento
atribuído às órfãs, incluindo o dote. É verdade que, na Casa de Caridade vigora
a disciplina, mas ela não é em nada comparável ao que sofrem as escravas da
época. Os castigos são iguais para todas, pensionistas e auxiliares,
circunscritos a penitências (jejum e silêncio), restrições de recreio, eventual
retirada de distintivos nos trajes, como escreve Celso Mariz, o mais antigo
biógrafo de Ibiapina (‘Padre Ibiapina, um Apóstolo do Nordeste’, Ed. A União,
João Pessoa, 1942, p. 253).
Há também as ‘beatas’, que são
mulheres livres. Elas constituem um capítulo à parte, que não comento aqui. Se
você estiver interessado, veja, de Ernando Teixeira, o artigo ‘Ibiapina e seus
beatos’, na Revista Eclesiástica Brasileira (REB) de maio 2009. Veja também, de
Hugo Fragoso, o artigo ‘As beatas do Padre Ibiapina, uma forma de vida
religiosa para os sertões no Nordeste’, em: Desrochers, G. & Hoornaert, E.,
Ibiapina e a Igreja dos Pobres (São Paulo, Paulinas, 1984).
O ensino, numa Casa de Caridade, visa
facilitar o casamento, na época a chave do problema das mulheres, visa a
profissionalização e preparação a trabalhos remunerados. Como já escrevi acima,
as meninas aprendem os afazeres de qualificadas ‘donas de casa’. Pois o Padre é
intransigente no seguinte ponto: na Casa de Caridade reina a lei do trabalho,
não do lucro nem da comodidade de se apoiar em trabalho alheio. Ele não quer
saber em comprar terrenos ou casas, só trabalha em cima de donativos, de
doações. Existe um texto em que ele deixa claro que entende perfeitamente que a
compra leva irremediavelmente ao predomínio de dinheiro sobre o princípio do
compartilhamento. Pois não podemos esquecer que, na sociedade brasileira do
século XIX, como escreve um autor, se a relação entre o
senhor e escravo se baseia na violência, a relação entre senhor e
homens livres é mediatizada pelo favor. O favor é o grande
instrumento da hierarquização da sociedade brasileira no século XIX. Ibiapina
intui esse dado com rara lucidez: favor leva a subserviência, à manutenção de
relações sociais injustas. Ou se age por amor, ou não se faz nada. Ou se
organiza por meio de donativos, ou não se organiza. Reina a gratuidade. É nesse
sentido que se entende que o Padre Ibiapina manda o Beato Inácio ao Rio de
Janeiro para colher esmolas, um dado que é realçado no primeiro capítulo do
livro aqui em apreço (pp. 19-23), que traz um texto muito interessante do então
bispo do Rio de Janeiro, Dom Pedro Maria de Lacerda (1830-1890). Essas esmolas,
com insiste Mariz, não são ‘favores’, são expressões de caridade cristã: a
instituição não recebia de presente, não comprava e não possuía escravos (Mariz,
1942, p.257). O Padre Ibiapina, no dizer do mesmo autor organiza uma obra
de assistência e educação, a fim de socorrer os trabalhadores e preparar para
fins domésticos a mulher pobre dos sertões (ibidem, p. 4).
Isso sem qualquer ajuda por parte do poder público, voltado para os interesses
das capitais e dos centros urbanos e desinteressado em oferecer ensino público
dirigido ao sexo feminino. O Padre conta com as energias da população camponesa
e, com o tempo, suas obras se revelam superiores às do governo. Ele conta com o
mutirão, a livre e espontânea colaboração das pessoas, algo que o governo não
consegue. Além disso, usa materiais locais, não gasta inutilmente, tira
proveito do que a realidade local lhe oferece.
Termino trazendo mais uma recordação
pessoal. Anos atrás, vivendo em Fortaleza, surpreendi o Cardeal Aloísio
Lorscheider, em sua casa, lendo a ‘Crônica das Casas de Caridade’. Ele me
disse: Aqui está a realidade do Nordeste. Uma realidade que
continua, mais que nunca, nos desafiando.
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