Por Eduardo Hoornaert
A Irmã Dulce (1914-1992),
religiosa que atuou em Salvador da Bahia, ao ser canonizada santa em Roma no
domingo, 13 de outubro de 2019 sob o nome Santa Dulce dos Pobres, entra na
longa lista de santos e santas que se fizeram marcar por um exercício excepcional
da luta a favor dos excluídos da sociedade sem, contudo, contestar a
estruturação dessa mesma sociedade no sentido de criar e perpetuar tal
exclusão. Para dizer a mesma coisa em outras palavras: a Irmã Dulce, ao exercer
admiravelmente a virtude da caridade cristã, não exerce outro requisito do
evangelho que consiste no exercício da profecia, ou seja, da destemida
proclamação das injustiças existentes nas sociedades em que vivemos. Pelo
contrário, há indícios de uma convivência, nem sempre isenta de procedimentos
suspeitos (assinar notas frias, por exemplo), com os ‘donos do poder’ na Bahia.
Por isso proponho aqui qualificar a santidade da Irmã Dulce de ‘híbrida’, ou
seja, resultante do cruzamento entre uma sincera e persistente compaixão por
pobres, rejeitados e doentes, de um lado, e uma frequentemente não expressa nem
conscientizada aceitação de estruturas injustas, que estão em grande parte na
origem dos males acima citados.
Há coisas que só se
esclarecem satisfatoriamente mediante considerável recuo no tempo, pois elas
pertencem ao que se costuma chamar ‘história de longa duração’. Daí as
seguintes anotações históricas.
O comportamento de Jesus
de Nazaré
Se focalizamos por uns
instantes o comportamento de Jesus de Nazaré, percebemos logo que Ele, vivendo
numa sociedade num universo dominado pela ideia da conformidade com opressão e
marginalização, se destaca diante da figura do fariseu, paradigmática da
sociedade palestina daqueles tempos. Os fariseus são os santos de Israel, em
tempos de Jesus. Eles praticam a caridade, dão esmola aos necessitados e não
questionam as causas da marginalização de grande parte da população. Aceitam a
sociedade tal qual existe. Jesus, pelo contrário, mostra que a pobreza da
maioria tem a ver com a riqueza exorbitante de uma pequena minoria, não aceita
o modo em que a sociedade está organizada. Por isso, entra numa rota de colisão
com os articuladores daquela sociedade a acaba sendo cruelmente assassinado
pelas autoridades do país.
Perplexidades no século
II.
Os primeiros cristãos
herdam um legado que é ao mesmo tempo um desafio: o de serem fiéis e, portanto,
de vivenciar uma santidade tão corajosa e tão desafiadora como a de Jesus. Eles
sofrem perseguição, enfrentam processos que não raramente levam à morte
violenta. É a igreja dos mártires, também chamada igreja das catacumbas.
Há como seguir com certa
precisão os primeiros sinais de um hibridismo que se instala no seio da
tradição de Jesus ao longo do século II. Podemos seguir o roteiro dessa
história comparando – por exemplo – as posturas de um cristão como Marcião (por
volta dos anos 140) e as de Justino (que escreve mais ou menos na mesma época).
Enquanto Marcião insiste no ‘Deus estranho’ e na ‘loucura da cruz’ (duas
imagens de São Paulo), Justino procura um certo reconhecimento, uma certa
‘honorabilidade’, por parte da sociedade dominante. Por trás das divergências
entre esses dois representantes do pensamento cristão da época se percebe
o cansaço de muitos participantes das comunidades em ficar numa tensão contínua
de serem incomodados pelas autoridades, expostas a humilhações e perseguições,
mesmo eventualmente à prisão ou morte. Há uma procura de águas mais tranquilas
para a navegação cristã. Justino é porta-voz dessas tendências, ele procura
aproximação com as autoridades, sintoniza com muitos que gostariam de ser
reconhecidos na sociedade pela honradez, a prática de virtudes reconhecidas
pelos códigos morais romanos. Enfim, nos escritos de Justino, a herança de
Jesus sofre uma importante transmutação. Apavorado com a ousadia de seu
contemporâneo Marcião, ele evita falar da vergonhosa morte de Jesus na cruz
(veja, por exemplo, em seu ‘Diálogo com Trifão’, o trecho 10,2). A gente sente,
em suas colocações, questionamentos típicos da época: como seguir um homem
condenado pela justiça? Um homem crucificado, ou seja, que merece ser eliminado
do convívio humano (Mt 27, 42)? Como explicar um Jesus derrotado e
vergonhosamente humilhado na tortura da cruz? Como explicar Gólgota, o lugar em
que até Jesus chegou a desesperar (Mc 15, 34)? Como superar essa suprema
vergonha? Isso é uma loucura, escreve Paulo, apenas 20 anos após a morte de
Jesus. (1 Cor 2, 1-5). Por sinal, convém evocar aqui os quatro primeiros
capítulos dessa Primeira Carta aos Coríntios, que contêm uma longa controvérsia
com a ‘sabedoria grega’, um paradigma importante, como veremos em seguida.
Nada mais normal que
fugir da cruz e procurar um ‘modus vivendi’ com a mentalidade reinante. Para
que o leitor de hoje possa entender o que escrevo aqui, lembro que ao longo dos
séculos há uma remodelação da imagem de Jesus crucificado, que hoje se ostenta
nos prédios do funcionalismo público no Brasil. Não se pode idealizar a
história do cristianismo e se imaginar que a perspectiva da cruz entrou no seio
das comunidades sem encontrar resistências. Resistências que, afinal,
desembocam num casamento ‘de razão’ entre a mensagem explosiva do evangelho e
as conveniências do convívio humano. Ou seja, num hibridismo. Melhor apresentar
Jesus como um ser poderoso, acima das contingências humanas. Eis a tendência.
Não me aprofundo aqui nesta questão que postula considerações que faço em
outros textos publicados em meu blog. Mesmo assim, a quem quiser se aprofundar
nessas questões, aconselho a leitura do livro do Padre Jesuíta Jacques Dupuis
‘Rumo a uma Teologia do Pluralismo Religioso’ (São Paulo, Paulinas, 1999).
Pode-se dizer que Justino
inaugura a ‘igreja dos confessores’, a substituir a ‘igreja dos mártires’. Em
outras palavras: o hibridismo cristão consiste em aceitar, afinal, a ‘sabedoria
grega’, uma poderosa onda cultural, vinda de longe. Aqui, o tema da ‘sabedoria
grega’ é fundamental. Sua compreensão ajuda a avaliar a atuação da Irmã Dulce,
a Santa dos Pobres da Bahia.
A hibridação da santidade
a partir do século III.
O processo de hibridação
da mensagem cristã toma impulso quando o filósofo alexandrino Plotino chega em
Roma, na primeira parte do século III dC. Ele inaugura ali uma escola para
jovens da elite romana e passa a ensinar o neoplatonismo. Ao encontrar um
ambiente fértil para sua espiritualidade, Plotino alcança em poucos anos um
renome extraordinário. Com ele penetra, no âmbito da intelligentia romana
(tanto na capital como em cidades menores), uma ‘leitura grega’ (como costumam
dizer os teólogos) do homem e da história, ou seja, uma interpretação platônica
do ser humano e do sentido de sua existência.
Plotino entra em cena no
momento em que o movimento cristão procura se situar numa sociedade fortemente
marcada pela helenização da política, da cultura, da moral e dos modos de vida
em geral. O Império só é latino nos campos da administração e do exército,
sendo ‘grego’ em sua alma, em seu modo de ver o mundo, em sua espiritualidade. Uma
compenetração de ideias e modos de vida gregos que têm origem nas sensacionais
conquistas militares e culturais de Alexandre Magro, no século III aC, Com ele
se inicia um processo de helenização global da cultura, da espiritualidade e da
filosofia pela imensidão das regiões dominadas pelas legiões romanas. Uma das
expressões mais significativas dessa helenização consiste na divulgação de uma
espiritualidade neoplatônica.
Plotino, seguindo Platão,
ensina que, abaixo do mundo divino, que é pura luz, onde o mal não penetra,
existe a matéria, onde a luz divina só penetra de modo sombreado (o mito da
caverna). A matéria é o último reduto das trevas diante da luz divina, a raiz
do mal que afeta a vida humana. O corpo, morada de uma alma mergulhada na matéria,
é um espaço ambíguo: pode deixar-se seduzir pelas formas vãs da matéria, ou
deixar-se fascinar pela luz imaterial. O corpo é prisão e sepulcro, mas ao
mesmo tempo abertura para a luz. Tudo depende de como se lida com ele. Seus
impulsos têm de ser controlados, não por repressão, mas por amor pelas
realidades espirituais, um amor purificado e desprendido da matéria. O homem
precisa se elevar acima do mundo material e caminhar para o que é espiritual.
Precisa arrancar tudo de si para amar o que é invisível, fechar os
olhos diante da materialidade e esperar o Deus que vem, assim como, antes da
aurora, nossos olhos esperam a chegada da luz do sol. Quando o sol chega, ele
logo toma conta de tudo. A luz espiritual dissipa as trevas da matéria.
Eis um programa de
santidade muito diferente do programa profético da Bíblia, mas que – pelo menos
nos círculos intelectuais – é incorporado num lapso de tempo relativamente
curto.
O caso paradigmático,
aqui, é o dos Padres da Igreja, nome dado aos intelectuais do cristianismo
entre os séculos III e XIII, que determinam o pensamento da elite cristã
ao longo de mil anos. Intelectuais empenhados em traduzir a mensagem cristã em
termos gregos (e depois latinos), em conformidade com a cultura do período.
Raros são os Padres da Igreja que conseguem manter o tom profético do evangelho
diante da onda neoplatônica. A maioria opta pela hibridação, ou seja, segue a
filosofia de Plotino e enxerga nela uma síntese entre o pensamento grego,
predominante na época, e a visão bíblica do mundo, própria das minorias cristãs
espalhadas pelo Império. Com o tempo, não se consegue mais distinguir com
clareza entre cristianismo e neoplatonismo. A perspectiva social, onipresente
nos evangelhos, desvanece. O drama da vida passa a se processar entre a alma
individual e Deus. Os impulsos do corpo são controlados e possivelmente
eliminados, enquanto o ápice da experiência cristã passa a ser o êxtase, a
contemplação de Deus.
Ressalto aqui que a
interpenetração entre cristianismo e neoplatonismo se processa de forma lenta,
ao longo de séculos. Resulta num amálgama, o que dificulta traçar fronteiras
claras. Do ‘casamento’ entre a espiritualidade neoplatônica e bíblica nasce uma
vivência cristã híbrida que em muitos ambientes perdura até hoje. Linhas
entrelaçadas durante tantos séculos só se destrincham mediante uma análise
historiográfica em profundidade. Estamos aqui falando de um fenômeno
de longa duração, largamente integrado na vivência cristã comum de nossos dias.
Como vislumbrar, em meio a tantas manifestações de filantropia, amor à
humanidade sofrida, luta pelo bem-estar de outra pessoa, altruísmo, preocupação
com o bem-estar e a felicidade alheia, combate ao egoísmo, o profetismo de
Jesus? Como aproximar duas imagens que costumam andar separadas no imaginário
cristão: a do revolucionário e a do santo? Como entender as palavras de Dom
Helder Câmara:
Quando dou uma esmola a
um pobre, me chamam santo;
Quando pergunto por que
ele é pobre, me chamam comunista?
A imagem do
revolucionário, malgrado retificações que afinal atingem pouca gente, costuma
estar ligada à violência, enquanto a imagem do santo costuma ser a de alguém
que, fugindo de situações violentas e da ‘política’, se apresenta de joelhos
e/ou de mãos postas, como se vê em inúmeras igrejas do mundo católico.
A igreja católica, no
momento em que vivemos, acolhe a santidade híbrida da Irmã Dulce. Oxalá tenha a
coragem de acolher igualmente a santidade profética de pessoas como Helder
Câmara.
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