Frei Betto
Na década de 1980, visitei
com frequência países socialistas. As viagens decorreram de convites dos
governos daqueles países, interessados no diálogo entre Estado e Igreja.
Acreditavam que a Teologia da Libertação poderia contribuir nesse sentido.
Do que observei concluí que
socialismo e capitalismo não lograram vencer a dicotomia entre justiça e
liberdade. Ao socializar o acesso a bens materiais básicos e direitos
elementares (alimentação, saúde, educação, trabalho, moradia e lazer), o
socialismo implantara um sistema mais justo que o capitalismo.
Ainda que incapaz de evitar a
desigualdade social e, portanto, estruturas injustas, o capitalismo instaurou,
aparentemente, liberdades – de expressão, reunião, locomoção, crença etc. – que
não se viam nos países socialistas.
Residiria o ideal um sistema
capaz de reunir a justiça social predominante no socialismo com a liberdade
individual vigente no capitalismo? Ora, a dicotomia é inerente ao capitalismo.
A liberdade que nele predomina não condiz com os princípios de justiça. Seus
pressupostos paradigmáticos – competitividade, livre iniciativa, hegemonia do
mercado – são antagônicos aos princípios socialistas (e evangélicos) de
solidariedade, partilha, defesa dos direitos dos pobres e da soberania da vida
sobre os interesses do capital.
No capitalismo, a apropriação
individual, familiar e/ou corporativa da riqueza é direito protegido por lei. E
a aritmética ensina que, quando um se apropria em demasia, muitos são
desapropriados. A opulência de poucos decorre da carência de muitos. A história
da riqueza no capitalismo é uma sequência de guerras, saques, roubos, invasões,
anexações, especulações etc.
Hoje, a riqueza da maioria
das nações desenvolvidas decorre da pobreza dos países ditos emergentes. Ainda
agora os parâmetros que regem a OMC são claramente favoráveis às nações
metropolitanas e desfavoráveis aos países exportadores de matérias-primas e
mão-de-obra barata.
Um país capitalista que
agisse segundo os princípios da justiça social cometeria suicídio sistêmico;
deixaria de ser capitalista. Nos anos 1980, fui questionado, ao proferir
palestra em Uppsala, por que o Brasil, com tanta fartura, não conseguia
erradicar a miséria, como fizera a Suécia. Perguntei-lhes: “Quantas empresas
brasileiras estão instaladas na Suécia?” Fez-se prolongado silêncio. Naquela
época, nenhuma empresa brasileira operava naquele país. Em seguida, indaguei:
“Sabem quantas empresas suecas estão presentes no Brasil?” Todos sabiam que
havia marcas suecas em quase toda a América Latina, como Volvo, Scania,
Ericsson e a SKF, mas não precisamente quantas no Brasil. “Vinte e seis”,
esclareci. (Hoje são mais de 100). Como falar em justiça quando um dos pratos
da balança comercial é obviamente favorável ao país exportador em detrimento do
importador?
Se a injustiça social é
inerente ao capitalismo, poderia alguém objetar: mas não é verdade que neste
sistema o que falta em justiça sobra em liberdade? Nos países capitalistas não
predominam o pluripartidarismo, a democracia, o sufrágio universal, e cidadãos
não manifestam com liberdade suas críticas, crenças e opiniões? Não podem
viajar livremente e até mesmo escolher viver em outro país, sem precisar imitar
os refugiados mediterrâneos?
De fato, nos países
capitalistas a liberdade existe apenas para a minoria que dispõe de recursos.
Para os demais, vigora a liberdade virtual. Como falar de liberdade de
expressão de uma faxineira? É uma liberdade virtual, pois ela não dispõe de
meios para exercitá-la.
Por que os votos dessa gente
jamais produzem mudanças estruturais? No capitalismo, devido à abundância de
ofertas e à indução publicitária ao consumo supérfluo, qualquer pessoa que
disponha de renda é livre para escolher, nas gôndolas dos supermercados, entre
diferentes marcas de sabonetes ou sucos. Tente-se, porém, escolher um governo
disposto a reduzir os privilégios dos ricos e ampliar os direitos dos mais
pobres! Tente-se alterar o sacrossanto “direito” de propriedade (baseado na
sonegação desse direito à maioria). E por que Europa e EUA fecham suas
fronteiras aos imigrantes dos países pobres? Onde a liberdade de locomoção?
Sem os pressupostos da
justiça social, não se pode assegurar liberdade para todos.
Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre
outros livros.
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