por Maria
Clara Lucchetti Bingemer
As
centenas de feiras literárias organizadas todos os anos nas capitais, nas
cidades do interior, no sertão, no semiárido e nas periferias nos dão uma boa
oportunidade para prestar homenagem a esse grande, fiel e inseparável amigo,
feito de papel, cola, grampo, linhas e letras que é o livro. Essa moldura
recheada de conteúdos os mais diversos: paixão, aventura, amor, dor, suspense
e, sobretudo, a mais elevada forma de atividade do espírito humano: a atividade
literária, a criação do texto, a inspiração poética.
Lamentavelmente vamos ficando poucos os que ainda nos aproximamos do livro com
paixão ansiosa. Trata-se de uma verdadeira aventura amorosa abrir um novo
livro, virar suas páginas, tocar seu papel e sentir-lhe a consistência, cheirá-lo
e finalmente mergulhar em seu conteúdo, absorvendo ávida e deliciosamente as
palavras mágicas que nos fazem viajar, sofrer, chorar, rir, amar,
refletir, rezar...
As novas
tecnologias entraram com força em nossas vidas, atraindo-nos e conquistando-nos
por inteiro com sua rapidez, eficiência e imediatez. O clique de um botão
envia pela internet a antes carta perfumada e laboriosamente escrita, que
passava pelas etapas do selo, do correio, do carteiro. O telefone celular
agora não se limita a receber e enviar chamadas telefônicas, mas envia e recebe
mensagens eletrônicas, toca música, apresenta os mais variados jogos. A
rede faz chegar do outro lado do mundo livros inteiros em questão de minutos e
mesmo segundos. E disponibiliza bibliotecas, periódicos e artigos onde se
pode, sem sair da frente da tela do computador, fazer o que antes se fazia das
páginas impressas do livro.
Há ainda a
televisão, que a cada dia apresenta capítulos de novela e sessões de “reality
shows”. Breve será interativa e poderemos “conversar” com ela e através dela,
tal como já fazemos através da internet no computador.
E, no
entanto...será que se trata da mesma coisa? Será idêntica a experiência
que temos e vivemos diante de um computador ou de uma televisão e aquela que
desafia todas as nossas energias e faculdades mentais diante das páginas de um
livro novo, recém aberto, ou de um livro antigo e tão amado que se tornou amigo
de infância e que não cansamos de revisitar e reler?
Não há
dúvida que as novas tecnologias revolucionaram para melhor nossas vidas e nos
trouxeram contribuições inestimáveis em termos de possibilidades de aceder mais
veloz e diligentemente a toda e qualquer informação que desejamos. Porém, é
inegável que essas mesmas tecnologias podem criar em nós uma espécie de
dependência, de vício, que funciona como uma droga que nos impede de estar
abertos e disponíveis a outras coisas. É assim que as novas gerações podem
passar horas brincando em um computador, em salas de "chat" na internet
em conversas que muitas vezes não são tão produtivas. Ou não perder um
capítulo de novelas e “reality shows” que vão encurtando e atrofiando cada vez
mais sua potencialidade criativa, não estimulada por contribuições sempre
menores e menos significativas.
Enquanto a leitura do
livro nos desafia, nos exige e nos ajuda a fazer novas interpretações e
sínteses que vão nos permitir viver as situações vitais com maior preparação e
um quadro de referências mais ricas, muitas das novas tecnologias, sobretudo se
utilizadas com excesso e falta de discernimento, podem instaurar uma
comunicação veloz, sim, mas sem muita consistência. A prova disso é o tamanho
dos poucos textos que acompanham a louca dança das imagens na internet: são
cada vez mais curtos, escritos em estilo menos elaborado, cheios de erros de
português ou eivados de uma gíria própria que exclui as gerações nela não
iniciadas.
A leitura
exige tempo, calma e investimento. Ler um grande texto, uma bela poesia,
um denso ensaio pede atenção, concentração, reflexão. Parece ser coisa
que não se está mais disposto a exercitar nos tempos que correm. Rezar
diante de uma passagem bíblica, de um salmo, ou de um poema religioso pede que
toda a pessoa - corpo e espírito - esteja voltada para as letras que na
escritura desenham paciente e paulatinamente o rosto do divino buscado ansiosa
e amorosamente.
As
feiras literárias conseguem trazer-nos de volta um pouco da velha paixão e
respeito que merecem esses tão fiéis e adoráveis amigos que são os livros. Quem
sabe, também e não menos, conseguem nos devolver algo do sentimento tão
profundamente humano que vê e sente a leitura como um ato que tem algo de
profundo e de sagrado?
Maria Clara Bingemer é teóloga,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Simone Weil
– Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc),
entre outros livros
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