Por LEONARDO BOFF

Ela representa a convergência de
duas tradições da filosofia ocidental: a platônica de cariz idealista
transfigurada pela incorporação cristã e a aristotélica, mais empírica que está
na base da ciência. Elas se fundiram no século XVII a partir de Descartes e
fundaram a moderna tecno-ciência moderna, o paradigma dominante.
O interesse desse modo de ser é
como são as coisas, como funcionam e como nos
podem ser úteis. Não é o milagre de que as coisas são, confrontadas com o
nada. Separamo-nos do mundo natural para entrar profundamente no mundo
artificial. Perdemos a relação orgânica com as coisas, as plantas,
os animais, as montanhas e com os próprios seres humanos. Tudo se transforma em
instrumento para alguma finalidade. Não vemos o ser humano, como pessoa, portadora
de um propósito, mas a sua força de trabalho, seja física seja intellectual que
pode ser explorada.
Se algo pode ser feito, será feito
sem qualquer justificação ética. Se podemos desintegrar o átomo não há porque
não faze-lo e construir uma bomba atômica. Se podemos lançá-la sobre
Hieroshima e Nagasaki quem o impedirá? Se posso manipular o código genético,
não há limite moral ou ético que o possa coibir. E fazemos as experiências que
acharmos interessantes e úteis para o mercado e para certa qualidade de vida.
Heidegger nos adverte que esta
tecno-ciência criou em nós um dispositivo (Gestell), um modo de ver que
considera tudo como coisa ao nosso dispor. Colonizou todos os espaços e
subjugou todos os saberes. Transformou-se num motor que se acelerou de tal
forma que já não sabemos como pará-lo. Tornamo-nos reféns dele. Ele nos dita o
que fazer ou deixar de fazer.
Neste ponto Heidegger aponta o
altíssimo risco que corremos como natureza e como espécie. A tecno-ciência
afetou as bases que sustentam a vida e criou tanta força destrutiva que nos
pode exterminar a todos. Os meios já foram construídos e estão aí à nossa
disposição. Quem segurará a mão para não deslanchar um armagedon natural
e humano? Essa é a questão magna que nos deveria ocupar como pessoas e como
humanidade e menos o crescimento e as taxas de
juros.
A resposta tentada por Heidegger é
uma Kehre, uma ”Volta” que signfica uma revira-Volta. Este é o propósito
final de todo o seu pensamento, como o revelou numa carta a Karl Jaspers: ser
um zelador de museu que tira a poeira sobre os objetos para que se deixem ver.
Como filósofo se propunha (pena que usa uma linguagem terrivelmente complicada)
remover o que encobre o habitual e o cotidiano da vida. Pela sofisticação
técnico-científica ele ficou esquecido, abstrato ou enrijecido. Ao fazer isso o
que se revela então? Nada senão aquilo que nos rodeia e que constitui o nosso
ser-no-mundo-com-os outros e com a paisagem, com o azul do céu, com a chuva e
com o sol. É deixar ver as coisas assim como são; elas não nos
oprimem mas estão, tranquilas, conosco em casa. Foi buscar inspiração para esse
modo de ser nos pre-socráticos particularmente em Heráclito, que viviam o
pensamento originário antes de se transformar com Platão e Aristóteles em metafísica,
base da tecnociência.
Mas suspeita que seja tarde demais.
Estamos tão próximos do abismo que não temos como voltar. Na sua última
entrevista ao Spiegel de 1976 publicada post-mortem diz: “Só
um Deus nos pode salvar”. A questão filosófica sobre o destino de nossa cultura
se transformou numa questão teológica: Deus vai intervir? Vai permitir a
autodestruição da espécie?
Como teólogo cristão direi como São
Paulo:”a esperança não nos engana”(Rm 5,5) porque “Deus é o soberano amante da
vida”(Sb 11,26). Não sei como. Apenas espero.
Leonardo Boff é autor: Proteger a Terra-cuidar da
vida: como escapar do fim do mundo, Record Rio 2010.
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