Por Leonardo Boff
Os salmos constituem
uma das formas mais altas de oração que a humanidade produziu. Milhões e
milhões de pessoas, judeus, cristãos e religiosos de todas as tradições, dia a
dia, recitam e cantam salmos, especialmente os religiosos e religiosas e os
padres no assim chamado “ofício das horas” diário.
Não sabemos exatamente
quem seus autores, pois eles recolhem as orações que circulavam no meio
do povo. Seguramente muitos são de Davi (século X a.C). É considerado, por
excelência, o protótipo do salmista. Foi pastor, guerreiro, profeta, poeta,
músico, rei e profundamente religioso. Conquistou o Monte Sion dentro de
Jerusalém e lá, ao redor da Arca da Aliança, organizou o culto e introduziu os
salmos.
Quando se diz “salmo de
Davi” na maioria das vezes significa: “salmo feito no estilo de Davi”. Os
salmos surgiram no arco de quase mil anos, nos lugares de culto e recitados
pelo povo até serem recopilados na época dos Macabeus no século II.a.C. O
saltério é um microcosmo histórico, semelhante a uma catedral da Idade Média,
construída durante séculos, por gerações e gerações, por milhares de mãos e
incorporando as mudanças de estilo arquitetônico das várias épocas. Assim há
salmos que revelam diferentes concepções de Deus, próprias de certa época, como
aqueles, estranhas para nós, que expressam o desejo de vingança e o juízo
implacável de Deus.
Os salmos testemunham a
profunda convicção de que Deus, não obstante habitar numa luz inacessível, está
em nosso meio, morando como que numa tenda (shekinah). Podemos chegar a Ele, em
súplicas, lamentações, louvores e ações de graças. Ele está sempre pronto para
escutar.
O lugar denso de sua
presença é o Templo onde se cantam os salmos. Mas como Criador do céu e da
terra, está igualmente em todos os lugares, embora nenhum possa contê-lo.
Com razão, se orgulhavam
os hebreus dizendo: “ninguém tem um Deus tão próximo como nós”! Próximo de cada
um e no meio de seu povo. Os salmos revelam a consciência da proximidade divina
e do amparo consolador. Por isso há neles intimidade pessoal sem cair no
intimismo individualista. Há oração coletiva sem destituir a experiência
pessoal. Uma dimensão reforça a outra, pois cada uma é verdadeira: não há
pessoas sem o povo no qual estão inseridas e não há povo sem pessoas livres que
o formam.
Ao rezar os salmos,
encontramos neles a nossa radiografia espiritual, pessoal e coletiva. Neles
identificamos nossos estados de ânimo: desespero e alegria, medo e
confiança, luto e dança, vontade de vingança e desejo de perdão,
interioridade e fascinação pela grandeza do céu estrelado. Bem o expressou o
reformador João Calvino (1509-1564) no prefácio de seu grandioso comentário aos
salmos:
“Costumo definir este
livro como uma anatomia de todas as partes da alma, porque não há sentimento no
ser humano que não esteja aí representado como num espelho. Diria que o
Espírito Santo colocou ali, ao vivo, todas as dores, todas as tristezas, todos
os temores, todas as dúvidas, todas as esperanças, todas as preocupações, todas
as perplexidades até as emoções mais confusas que agitam habitualmente o
espírito humano”.
Pelo fato de revelarem
nossa autobiografia espiritual, os salmos representam a palavra do ser humano
a Deus e, ao mesmo tempo, a palavra de Deus ao ser humano. O saltério
serviu sempre como livro de consolação e fonte secreta de sentido,
especialmente quando irrompe na humanidade o desamparo, a perseguição, a
injustiça e a ameaça de morte. O filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) deu
este insuspeitado testemunho: ”Das centenas de livros que li nenhum me trouxe
tanta luz e conforto quanto estes poucos versos do salmo 23: O Senhor é meu
pastor e nada me falta; ainda que ande por um vale tenebroso, não temo mal
nenhum, porque Tu estás comigo”.
Um judeu, por exemplo,
cercado de filhos, era empurrado, para as câmaras de gás em Auschwitz. Ele
sabia que caminhava para o extermínio. Mesmo assim, ia recitando alto o salmo
23: “O Senhor é meu pastor…Ainda que eu ande pela sombra do vale da
morte, nenhum mal temerei, porque Tu estás comigo”. A morte não rompe a comunhão
com Deus. É passagem, mesmo dolorosa, para o grande abraço infinito da paz
eterna.
Por fim, os salmos são
poesias religiosas e místicas da mais alta expressão. Como toda poesia, recriam
a realidade com metáforas e imagens tiradas do imaginário. Este obedece a uma
lógica própria, diferente daquela da racionalidade. Pelo imaginário,
transfiguramos situações e fatos detectando neles sentidos ocultos e mensagens
divinas. Por isso dizemos que não só habitamos prosaicamente o mundo, colhendo
o sentido manifesto do desenrolar rotineiro dos acontecimentos. Habitamos
também poeticamente o mundo, vendo o outro lado das coisas e um outro mundo
dentro do mundo de beleza e de encantamento.
Os salmos nos ensinam a
habitar poeticamente a realidade. Então ela se transmuta num grande sacramento
de Deus, cheia de sabedoria, de admoestações e de lições que tornam mais seguro
nosso peregrinar rumo à Fonte. Como bem diz o salmista: “quando caminho entre
perigos, tu me conservas a vida…e estás até o fim a meu favor” (Salmo
138, 7-8).
Leonardo Boff é autor
de O Senhor é meu Pastor: consolo divino para o desamparo humano, Vozes
2013.
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