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terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Bíblias contra a Bíblia

Marcelo Barros

Na Câmara do Recife um projeto de lei propõe que a Secretaria de Educação distribua gratuitamente Bíblias para todas as crianças das escolas públicas do município. Esse tipo de iniciativa não ocorre somente  no Recife. Espalha-se, por todo o Brasil, de um modo ou de outro, por iniciativa de vereadores/as e deputados/as que representam Igrejas e grupos pentecostais e neopentecostais. 

Aparentemente, é um projeto educativo que beneficia crianças pobres com uma Bíblia. Afinal, essa é um livro sagrado para duas religiões: o Judaísmo e o Cristianismo com suas centenas de Igrejas, ortodoxas, evangélicas, pentecostais e a Católica romana. Sou padre e biblista. Dediquei toda minha vida ao estudo da Bíblia e a uso diariamente como leitura e oração. Por isso, me sinto com autoridade moral para vir a público expressar meu total desacordo com essa proposta. E não somente eu: a Comissão de Ecumenismo da Arquidiocese de Olinda e Recife, assim como pastores e cristãos de várias Igrejas se unirão ao Fórum Diálogos (para a defesa da diversidade religiosa em Pernambuco) na denúncia contra esse projeto de lei. 

Ao distribuir Bíblias para crianças das escolas públicas em Recife, o município estaria ignorando e mesmo discriminando outras tradições religiosas, não representadas pela Bíblia; tradições essas às quais pertencem muitas crianças das escolas públicas e suas famílias. Por ignorar outras religiões, esse projeto de lei não é verdadeiramente educativo.  Isso já é motivo suficientemente para rejeitá-lo, mas, acima de tudo, ele é inconstitucional. Desrespeita o caráter laico e independente do Estado brasileiro. Segundo a Constituição Federal, o Estado deve possibilitar o exercício livre de todas as religiões, mas não pode privilegiar a nenhuma. Menos ainda gastar dinheiro público para promover a doutrina de uma religião específica. 

Como discípulo de Jesus Cristo, vejo nessa proposta de lei uma contradição com o espírito do evangelho e o modo de ser de Jesus. Conforme o evangelho, os tais reis magos, que, na verdade, eram astrólogos (seguidores de outra religião) foram capazes de, sem nenhuma Bíblia, reverenciar Jesus que nasceu. Enquanto isso, os professores da Bíblia reconheceram no livro sagrado a verdade do que estava escrito, mas isso não os tocou interiormente. Ao contrário, o modo deles usarem a Bíblia acabou dando a Herodes a informação que levou o rei a mandar matar as crianças de Belém (Cf. Mt 2, 1 – 11). E assim, naquele caso, a Bíblia serviu para, indiretamente ajudar um rei poderoso a matar crianças. Como, em outros momentos da história, quando a Bíblia serviu como pretexto para discriminar e condenar as religiões dos povos indígenas e afrodescendentes no nosso continente. 

Ao contrário, em toda a sua vida, Jesus valorizou a presença divina em pessoas consideradas hereges pela própria religião judaica (os samaritanos). Elogiou a fé de um oficial romano que adorava os deuses do Império (Mt 8, 5- 13). Mudou de posição e curou a filha de uma sírio-fenícia que seguia a religião dos cananeus (Mt 15, 21- 28). Jamais discriminou ninguém por ser de outra fé ou religião. Uma vez, discípulos dele queriam condenar pessoas de uma aldeia samaritana, porque essas não quiseram receber o Mestre. Jesus os repreendeu. (Lc 9, 55). Isso nos faz pensar que o próprio Jesus estaria totalmente contrário a esse projeto de lei.     

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.  


 
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