Marcelo Barros
Na Câmara do Recife um projeto de lei propõe que a
Secretaria de Educação distribua gratuitamente Bíblias para todas as crianças
das escolas públicas do município. Esse tipo de iniciativa não ocorre somente no Recife. Espalha-se, por todo o Brasil, de
um modo ou de outro, por iniciativa de vereadores/as e deputados/as que
representam Igrejas e grupos pentecostais e neopentecostais.
Aparentemente, é um projeto educativo que beneficia
crianças pobres com uma Bíblia. Afinal, essa é um livro sagrado para duas
religiões: o Judaísmo e o Cristianismo com suas centenas de Igrejas, ortodoxas,
evangélicas, pentecostais e a Católica romana. Sou padre e biblista. Dediquei
toda minha vida ao estudo da Bíblia e a uso diariamente como leitura e oração.
Por isso, me sinto com autoridade moral para vir a público expressar meu total desacordo
com essa proposta. E não somente eu: a Comissão de Ecumenismo da Arquidiocese
de Olinda e Recife, assim como pastores e cristãos de várias Igrejas se unirão ao
Fórum Diálogos (para a defesa da diversidade religiosa em Pernambuco) na
denúncia contra esse projeto de lei.
Ao distribuir Bíblias para crianças das escolas
públicas em Recife, o município estaria ignorando e mesmo discriminando outras
tradições religiosas, não representadas pela Bíblia; tradições essas às quais pertencem
muitas crianças das escolas públicas e suas famílias. Por ignorar outras
religiões, esse projeto de lei não é verdadeiramente educativo. Isso já é motivo suficientemente para
rejeitá-lo, mas, acima de tudo, ele é inconstitucional. Desrespeita o caráter
laico e independente do Estado brasileiro. Segundo a Constituição Federal, o
Estado deve possibilitar o exercício livre de todas as religiões, mas não pode
privilegiar a nenhuma. Menos ainda gastar dinheiro público para promover a
doutrina de uma religião específica.
Como discípulo de Jesus Cristo, vejo nessa proposta de
lei uma contradição com o espírito do evangelho e o modo de ser de Jesus.
Conforme o evangelho, os tais reis magos, que, na verdade, eram astrólogos (seguidores
de outra religião) foram capazes de, sem nenhuma Bíblia, reverenciar Jesus que
nasceu. Enquanto isso, os professores da Bíblia reconheceram no livro sagrado a
verdade do que estava escrito, mas isso não os tocou interiormente. Ao
contrário, o modo deles usarem a Bíblia acabou dando a Herodes a informação que
levou o rei a mandar matar as crianças de Belém (Cf. Mt 2, 1 – 11). E assim, naquele
caso, a Bíblia serviu para, indiretamente ajudar um rei poderoso a matar
crianças. Como, em outros momentos da história, quando a Bíblia serviu como
pretexto para discriminar e condenar as religiões dos povos indígenas e
afrodescendentes no nosso continente.
Ao contrário, em toda a sua vida, Jesus valorizou a
presença divina em pessoas consideradas hereges pela própria religião judaica (os
samaritanos). Elogiou a fé de um oficial romano que adorava os deuses do
Império (Mt 8, 5- 13). Mudou de posição e curou a filha de uma sírio-fenícia que
seguia a religião dos cananeus (Mt 15, 21- 28). Jamais discriminou ninguém por
ser de outra fé ou religião. Uma vez, discípulos dele queriam condenar pessoas
de uma aldeia samaritana, porque essas não quiseram receber o Mestre. Jesus os repreendeu.
(Lc 9, 55). Isso nos faz pensar que o próprio Jesus estaria totalmente
contrário a esse projeto de lei.
Marcelo
Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e
assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades
eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da
ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45
livros publicados no Brasil e em outros países.
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