Por Frei Betto
João Paulo II consagrou, em 2000, o inglês Thomas Morus (1478-1535) padroeiro
dos políticos. Fez boa escolha, considerada a ambiguidade da
maioria dos políticos. Canonizado em 1935 pelo papa Pio XI e pouco
conhecido por sua suposta santidade, Morus é famoso por ser autor de um
livro clássico, Utopia (1516), termo que cunhou a partir do grego
utopos, que significa ‘lugar nenhum’.
Morus inspirou-se em Luciano, satírico grego do século II, autor de
História verdadeira, e em Erasmo, de quem era amigo, autor de
Elogio da loucura (1511), que em carta enviada a Morus afirmou que
“gracejos podem levar a algo mais sério.” É o que faz a boa literatura de
nosso Veríssimo.
Em sua obra, Morus descreve a comunidade de uma ilha onde não havia
dinheiro nem propriedade privada; admitiam-se adoradores do Sol e
da Lua. “Todos eram livres para praticar a religião que bem
entendessem, e tentar converter as outras pessoas para a sua
própria fé, desde que o fizessem tranquila e educadamente, por meio de
argumento racional.”
Tinha o autor por objetivo protestar contra as injustiças da
Inglaterra de sua época: pobreza generalizada, criminalidade (e apelos à
redução da maioridade penal…), pena de morte para quem furtava para matar a
fome. “Vocês ingleses” - diz o narrador da Utopia -, “me fazem lembrar os
professores incompetentes, que preferem reprovar os seus alunos que
ensinar-lhes. Em vez de infligir essas punições horríveis, seria
muito mais adequado proporcionar a todos algum meio de
sobrevivência, de modo que ninguém se encontrasse sob a
horripilante necessidade de se tornar, primeiramente, um ladrão, e
depois um cadáver.”
Na ilha de Morus “todos recebem uma porção justa, de modo a não
haver jamais pobres ou mendigos. Ninguém é proprietário de nada,
mas todos são ricos – afinal, que riqueza maior pode haver que a
alegria, a paz de espírito e estar livre da angústia?”
Dois fatores fizeram Morus renegar suas antigas ideias: a Reforma de
Lutero e a sua nomeação a funcionário real, em 1518. Picado pela mosca
azul, o poder lhe subiu à cabeça. Logo foi promovido a “conselheiro
teológico” e, em 1529, nomeado Lorde Chanceler de Henrique VIII.
O
que ele antes via como desejável, agora que chegara ao poder lhe
parecia perigoso. Preferiu esquecer o que pregou e escreveu. Embora a
comunidade da Utopia assemelhe-se ao comunismo, Morus, inimigo da
Reforma, passou a atacar a vida comum dos anabatistas como terrível
heresia, e tomou a defesa dos ricos proprietários de terras.
Lorde Morus proibiu mais de cem livros, perseguiu quem não professava a
fé católica, entre os quais o teólogo protestante William Tyndale,
que traduziu a Bíblia para o inglês. Segundo seu biógrafo, John Guy, Morus
aplicava severamente as leis que decretava: “Vendedores de livros eram
multados e presos, e seus estoques de literatura herética queimados
em praça pública”, e eles obrigados a desfilar em feiras livres,
cavalgando de costas, para que o povo lhes atirasse frutas podres.
No epitáfio que cunhou para si mesmo, Morus afirmava orgulhoso ter
sido um “perseguidor de ladrões, assassinos e hereges”. O último termo foi
suprimido na reforma de seu túmulo, no século XIX.
Em 1533, Henrique VIII separou-se de Catarina de Aragão, apaixonado
que estava por Ana Bolena. Como Roma lhe negou a anulação do
casamento, a fim de legalizar seu divórcio e sacramentar o novo
matrimônio perante a Igreja, o rei transferiu para si a autoridade
do papa e fundou a Igreja Anglicana. Por se recusar a aceitar Ana
Bolena como rainha da Inglaterra e ficar do lado do papa Clemente
VII, que excomungou Henrique VIII, Morus foi decapitado em 1535.
O
poder é antiutópico ou distópico por natureza? Por que, hoje, tantos
que outrora elevavam sua voz contra a exploração do capital e
desfraldavam bandeiras progressistas, de leões bravios tornaram-se dóceis
cordeiros do rebanho neoliberal?
Penso que o poder, devido às premências do presente, faz com que se perca
a visão de futuro. E como o poderoso tende a perpetuar-se no cargo
(vide as velhas raposas da política brasileira), procura reduzir o processo
histórico a seu momento pessoal. Julga-se início e fim, sem
consciência de que não passa de mediador (meio) de um mandato
popular.
Daí o risco de transformar-se numa figura ridícula, sem honra biográfica, mera
caricatura de suas ambições desmedidas. Em sua pobre topia, não há
mais lugar para a utopia.
Frei Betto é escritor,
autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
http://www.freibetto.org/>
twitter:@freibetto.
Copyright 2014 – FREI BETTO – Não é permitida a
reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou
impresso, sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los, propomos assinar
todos os artigos do escritor. Contato – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com)
CLIQUE AQUI - PARA ACESSAR TEXTOS MAIS ANTIGOS ANTERIORES AO BLOG
Nenhum comentário:
Postar um comentário