Por Maria Clara Bingemer
O mundo celebrou discretamente uma data importante em termos de reafirmação da
fé na espécie humana. Há ocasiões em que é possível constatar a
identidade deste ser que tem tantas coisas semelhantes a qualquer dos
mamíferos, mas a quem foi dado um dom único por parte do Criador: a alma, o
espírito. Por isso, mesmo em meio ao mais absurdo horror, o ser humano –
embora seja capaz das mais atrozes crueldades – pode fazer gestos e ter
atitudes de uma nobreza que cala as palavras e nos leva a curvar a cabeça em
reverente silêncio.
É este o caso de Etty (Esther Hillesum), cujo centenário ocorreu em 15 de
janeiro último. Nascida em 15 de janeiro de 1914 em Deventer, Holanda,
filha de um professor de línguas clássicas e de uma judia russa que quando
terminou a escola instalou-se em Amsterdam, na casa de um viúvo aposentado, seu
patrão e que se tornou também amante. Mulher extremamente atraente por
sua inteligência, personalidade e profundidade de espírito, Etty exercia grande
fascínio sobre os homens e, além do velho Hans, teve muitos outros namorados.
Foi em Amsterdam que conheceu o amor de sua vida, o psicólogo discípulo de
Jung, Julius Zíper, que sendo judeu como ela e homem de fé, abriu-lhe as portas
dos caminhos da oração. Etty Hillesum começou a rezar, a falar com Deus,
e em pouco tempo havia mergulhado tão fundo na experiência espiritual que
começou a receber graças místicas das quais se tem notícia na história das
religiões apenas com relação a pessoas muito especiais.
A bela experiência de amor por Spier e por Deus começou a desenvolver-se em
meio às restrições crescentes impostas aos judeus pelos nazistas na Holanda.
Após um tempo relativamente breve, Etty decidiu apresentar-se voluntariamente
no campo de Westerbork como assistente social. Seus diários indicam que estava
convencida de só poder ser fiel a si mesma se não abandonasse os que se
encontravam em perigo e se usasse sua energia para trazer vida às vidas dos
outros; ser um bálsamo para as feridas deles. O futuro bem próximo
mostraria que ela não seria eximida da sorte de seu povo.
Chegou a Westerbork justamente no momento em que as deportações para Auschwitz estavam
começando. Para mais de cem mil judeus, Westerbork era a última parada
antes de Auschwitz. Entre agosto de 1942 e setembro de 1943, Etty Hillesum
empregou seu tempo mantendo seu diário, escrevendo cartas e cuidando dos
doentes no hospital do campo. Sendo, enfim, “o coração pensante das barracas do
campo”.
Na medida em que a vida de Etty Hillesum se revela e manifesta, pode-se testemunhar
o processo de gradual superação da inclinação de encontrar consolo e alívio em
ilusões, fantasias, na direção de ideais ou verdades eternas através da
mediação da mais dura realidade. Ela se dá uma e outra vez ao real, ao
fato, àquilo que é concreto e particular: pessoas individuais, encontros,
eventos. Ela gradualmente aceita sua situação extremamente limitada na
vida e assim fazendo a transforma. Esta progressiva auto aceitação ocorre
a um grau tal que ela realiza e aceita a habitação da divindade em seu
interior. Ela olha a vida de frente e reconhece que se deve aceitar as
coisas como elas são.
Mas ao mesmo tempo recusa-se a deter-se na tristeza e desânimo consigo própria
e os outros. Seus olhos pousaram naqueles que personificariam a destruição de
si mesma e de seu povo, e com aguda inteligência descreve sua covardia e
temeridade mascaradas de bravura e poder. Com o olhar iluminado pela
Verdade contemplada, vê diretamente através do autoengano pelo qual foram
cegados os carrascos do povo de Israel. São os próprios nazistas que estão
presos pelas cercas de arame farpado. Não seus prisioneiros.
No dia 30 de novembro de 1943, o bálsamo que era a vida de Etty Hillesum
foi derramado nas câmaras de gás e fornos crematórios de Auschwitz em
solidariedade com seu próprio povo, e com milhões de outros seres humanos. Ela
compreende que Deus não é responsável diante de nós pelos eventos
históricos. Nós somos responsáveis diante de Deus pelas maneiras pelas
quais traímos o dom divino e sua presença. Seu “insight” mais
significativo pertence à vulnerabilidade da vida divina e é o pino da dobradiça
que mantém juntas as várias ambiguidades e paradoxos de sua vida
interrompida.
Esta mulher judia jovem, inteligente,
bonita e brilhante é capaz de fazer a passagem dos prazeres imediatos da vida
aos maiores sacrifícios por causa do amor e da solidariedade que sentia para
com seu povo. E fazer isto com alegria, gratidão e uma profunda e
espiritual consciência, sem o menor laivo de amargura, capaz de ver beleza na
desolação mortal do campo, indo para Auschwitz cantando com sua família e
apreciando em meio ao horror do campo os elementos da natureza, a água que
corre, o aroma das flores. E sentir-se rica e agraciada, mesmo sendo obrigada
a enfrentar e suportar uma morte certa e injusta.
Já em seus últimos
escritos, lemos o que Etty escreve, resumindo seus sentimentos em tão grave e
definitivo momento: «Gostaria muito de viver como os lírios do campo. Se as
pessoas entendessem esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como
os lírios do campo».
Maria Clara Bingemer é professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio
A teóloga é autora de “O
mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”,
Editora Rocco.
Copyright 2014 – MARIA
CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em
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