Por Maria Clara Bingemer
No início dos anos 1990, fui dar uma conferência
sobre o papel da mulher na Igreja. A organização pediu que o texto fosse
enviado antes e assim o fiz. Recebi-o de volta com a seguinte observação:
“Favor usar a linguagem inclusiva”. Atônita fui verificar de que se
tratava. E descobri que não se usava mais a expressão “o homem” para
designar a humanidade inteira. Recorria-se a expressões como “o homem e a
mulher”, a “ pessoa humana”, “ser humano” etc.
Aprendi, naquela ocasião, o que significava
linguagem inclusiva. É a que não exclui uma das partes ao dizer o todo,
mas expõe as diferenças, a fim de a tudo incluir. Passei a tomar muito
cuidado quando escrevia sobre temas de antropologia teológica ou ciências
humanas, usando sempre a linguagem inclusiva. E era ajudada pela vigilância da
comunidade acadêmica, que desejava realmente introduzir esse “novum” no falar e
no pensar.
Hoje, mais de vinte anos depois, percebo que
a linguagem inclusiva encontrou realmente cidadania e se antes soava estranho
dizer “o ser humano” para designar o todo da humanidade, hoje acontece o
contrário. Soa estranho, retrógrado e inadequado usar a expressão “o
homem” quando se quer referir algo tão cheio de matizes e sutis diferenças como
a humanidade. Isso comprova que nossa linguagem é performativa,
cria realidade e a configura, fazendo acontecer as coisas que não são para
dentro do reinado do ser.
Hoje está em curso um outro processo de linguagem
inclusiva. Refere-se ao espaço em que habitamos, ao continente em que
vivemos, o lado de cá da Terra, que compreende do Alasca à Patagônia e é o
único do mundo que pode ser percorrido inteiramente por terra, sem
interrupções. Refiro-me à América, “descoberta” por Cristóvão Colombo em 1492,
mas já habitada anteriormente por diversas tribos e nações de imensa riqueza
cultural e diversidade linguística.
A parte norte do continente, colonizada por
ingleses chegados no navio Mayflower, desenvolveu-se muito, enriqueceu
notavelmente, incluindo nesse processo de desenvolvimento o massacre das tribos
indígenas, a escravidão dos africanos e o saque a territórios antes
pertencentes a outros países, como o México. A parte sul, denominada “Patria
Grande”, também tem pecados de opressão e colonialismo a confessar, mas não
conseguiu a pujança de enriquecimento dos irmãos do Norte. Permanece
marcada pela pobreza, a desigualdade e a opressão.
Disso redundou um isolamento da parte norte do
continente que passou a autocompreender-se como desligado do Sul, assumindo
para si apenas o nome que pertencia a todo o conjunto encontrado por Colombo:
América. América passou a ser o outro nome dos Estados Unidos, nação
grande e poderosa, rica e dominadora, que defende truculentamente suas
fronteiras e mantém uma política externa opressiva e temida. Diante de
seu potencial bélico e sua agressividade comercial, tremem os povos fracos e os
países pobres.
O sul do continente teve dupla colonização:
espanhola e portuguesa, e os países correspondentes aos diversos vice-reinados
receberam nomes diferentes. Cada um deles é rico cultural e
linguisticamente, mas muitas vezes carente de recursos materiais. Seus
habitantes têm a autoconsciência de sua identidade em termos de país, mas não a
de ser um grande continente, chamado desde o princípio América e assim permanecendo
até os dias de hoje.
O Papa João Paulo II propos, em 1996, que a Igreja
fosse uma só em toda a América. De lá para cá não parece ter havido
muitos progressos nesse sentido. O Papa Francisco também fez tentativas
em suas visitas ao continente e muito especialmente em seu discurso ao
congresso dos Estados Unidos, onde defendeu abertamente a causa dos migrantes
que entram nos Estados Unidos atrás do chamado “sonho americano” de
prosperidade e melhoria de vida.
Parece-me que deve-se somar a todos esses esforços
de conscientização uma transformação da linguagem. Ao falar, pensar,
escrever sobre esta parte do mundo, deve-se usar a grafia América,
seguindo a grafia hispânica, que foi a primeira que o continente conheceu e com
a qual foi batizado.
Assim, paulatinamente, o nome América
poderá ir trabalhando as mentes, corações e consciências no sentido de que os
índios guaranis e ianomâmis, as tribos quéchuas e os aymaras, os
afro-brasileiros e os latinos migrantes nos EUA são tão americanos como os
anglo-saxões. Poderemos assim esperar que a linguagem vá fazendo seu caminho no
imaginário dos povos, incluindo todos em uma mesma denominação. E que se faça
verdade o que disse o presidente Barack Obama no discurso em que anunciou a
retomada das relações com Cuba: “Somos todos americanos”.
Maria Clara Bingemer é professora
do Departamento de Teologia da PUC-RJ.
A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por
Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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