Por Gilbraz Aragão
Sobre o livro Em busca de Jesus de Nazaré, uma análise
literária, de Eduardo Hoornaert, Paulus, 2016.
“No meio de uma feira, uns poucos
palhaços
Andavam a mostrar, em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.
Os magos histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento.
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.
E toda aquela gente deu esmola aos tais ciganos:
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu ao ver este quadro, apóstolos romanos,
Lembrei-me de vós, funâmbulos da cruz,
Que andais pelo universo há mil e tantos anos,
Exibindo, explorando, o corpo de Jesus”
Andavam a mostrar, em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.
Os magos histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento.
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.
E toda aquela gente deu esmola aos tais ciganos:
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu ao ver este quadro, apóstolos romanos,
Lembrei-me de vós, funâmbulos da cruz,
Que andais pelo universo há mil e tantos anos,
Exibindo, explorando, o corpo de Jesus”
(Abílio Manuel Guerra Junqueiro).
Das imagens ou símbolos ninguém se livra no jogo do conhecimento: a questão é como interpretamos as coisas. Dizer que “Jesus Cristo é o Senhor”, então, pode relativizar e questionar os senhores deste mundo (o pai, o padre ou pastor, o político, o professor, o patrão), como pode também sacralizá-los como enviados ou legados de Deus. O símbolo, escrito ou esculpido, liberta ou submete a gente. Posso olhar pra Jesus, por exemplo, e encontrar força para enfrentar as cruzes injustas, como a sua, ou então achar consolo ("Mais sofreu Jesus") para carregar como ele uma cruz tida como destino divino - porque eu ou a humanidade ofendemos a deus e precisamos pagar com o nosso suor e sangue! Durante mil anos, Orígenes e Agostinho ajudaram os cristãos a pensar na cruz de Cristo como resgate pago ao maligno pelas nossas almas; no século XI Anselmo pensou mais em satisfação devida a Deus pelos nossos pecados e, no século da Reforma, falava-se ainda em punição justa pelo pecado humano - não é à toa que o cristianismo foi associado à culpa e não ao perdão.
Depois da ciência moderna e de Darwin, sabe-se que o ser humano é criado em um processo de evolução, não havendo, portanto, um pecado "original" histórico - senão como uma tendência "originante" da “natureza” da gente para o ensimesmamento. E assim a hermenêutica transforma a saudade do "paraíso" em esperança: não nos é natural sermos naturais, podemos nos educar para uma amorosidade sempre maior, na direção do "ajardinamento" de tudo e com todos. Com isso, fica sem sentido a interpretação de que Jesus foi um emissário divino que veio para resgatar as vítimas da "queda original", juntamente com a visão da cruz como o momento do sacrifício divino que pagou o resgate do pecado.
Os bons teólogos cristãos discutem isso agora, articulando a possibilidade salvífica como uma experiência mais-que-natural de descentramento - vivida exemplarmente por Jesus Cristo, que com gosto amoroso acolheu o Outro, até em seus braços abertos na cruz. Cruz que foi consequência indesejada do seu amor histórico e político pelos outros, pelos pobres e desprezados (basta ver a irônica tabuleta nela dependurada, relacionando a pena às suas supostas pretensões de poder).
O livro que Eduardo está
lançando, nessa linha, desenvolve uma leitura histórico-literária dos primeiros
anos do movimento cristão, mostrando como, nos anos 50, Paulo apresenta Jesus
como “o Ungido”; nos anos 60 a Carta aos Hebreus interpreta Jesus a partir da
figura bíblica de Melquisedec e como depois, nos anos 70, Marcos retoma tudo
isso e faz a memória de Jesus em um novo gênero literário que dá origem aos
Evangelhos. O livro de Eduardo, assim, na contramão de leituras ortodoxas e
descontextualizadoras (como a trilogia de Ratzinger sobre Jesus ou o
best-seller Uma história politicamente incorreta da Bíblia, de Hutchinson),
recupera e atualiza para nós a pesquisa sobre o Jesus Histórico, ajudando-nos a
responder a uma questão atualíssima: alguém que se declara sem religião hoje,
mas procura o seguimento de Jesus de Nazaré, é cristão? Ele parte do
pressuposto pelas teologias contextuais, que consideram o processo histórico da
experiência religiosa, lembrando que um cristão precisa saber qual foi a fé de
Jesus, para poder orientar a sua fé (ainda que antropológica) em Jesus!
Em sua hermenêutica da
Carta aos Hebreus, sobretudo, Eduardo afirma que ser cristão é tomar uma
atitude diante da morte e se preparar para encarar a morte, se preciso for.
Porque Jesus, pendurado numa cruz, dá testemunho da perversão do mundo e até de
uma religião que mata inocentes em nome da moral. “O sacerdote segundo
Melquisedec revela a maldade por trás da moralidade estabelecida. Diante da
cruz, o mundo fica nu, revela a dinâmica que o move” (pg. 93).
Jesus nos ajuda a ter fé direito, justo na sua cruz (afinal, o sentido de uma vida se revela na sua morte, e o Homão da Galileia não morreu de hepatite numa cama ou atropelado por um camelo na rua!), e não por causa de algum milagre, mas sim apesar da ausência do divino ("Por que me abandonaste?!"). E não uma crença esotérica na temperatura dos infernos ou no mobiliário do céu, porém uma aposta obediente no mistério da vida, que nos escapa - o que tira o medo de morrer e de amar existencialmente, e de perdoar até aos inimigos ("Eles não sabem o que fazem!").
Então se a gente olha pras imagens de Jesus em crucifixos barrocos ou mesmo em cinema e teatro que atualmente apresentam um Cristo sanguinolento e contristado, deve descobrir que se trata de uma mística penitencial (vejam o "Senhor Morto" aplaudido na Semana Santa e as Vigílias da Páscoa esvaziadas!), de uma espiritualidade cristã que nos veio com a colonização do mundo ibérico do século XVI, acentuando a intervenção divina (Providência) em todos os momentos e cultivando um apreço pela humanidade empobrecida e humilhada - principalmente no presépio e na paixão - do santo maior, Cristo, que se liga à aceitação resignada do sofrimento humano e da morte. Aí não se espera seguimento ético histórica e existencialmente recontextualizado, mas pura imitação estética do santo (lembram dos crucificados das Filipinas?!).
Atribui-se já a Cirilo de Jerusalém a afirmação de que "o mundo inteiro se encheu de pedaços do lenho da cruz", e de toda sorte essa mística que perdura entre nós remonta à Idade Média, quando "o poder da cruz de Cristo encheu o mundo", como disse Atanásio de Alexandria. Não é de hoje (o poema acima é do final do século XIX) que há protesto contra uma imagem do crucificado que parece não ter ressuscitado, e muito menos brincado e dançado em vida - como todo moleque judeu em festa de casamento. Mas nas igrejas e muito além de suas paredes, a pessoa e mensagem de Jesus renovam-se atualmente como uma "Beleza tão antiga e tão nova". Aliás, foi pensando no Cristo que Dostoievsky sentenciou "A beleza salvará o mundo"!
Precisamos recontextualizar e descolonizar as imagens sagradas que nos foram passadas em certas interpretações dos textos sagrados. Pois é preciso passar da dependência do milagre “sobrenatural” que traz benefício do “santo” imitado, para a crença na possibilidade de sermos igualmente “santos” e capazes de fazer das nossas vidas um milagre “mais-que-natural” para a vida dos outros – pelo amor, que é (de) Deus! Qual deve ser mesmo o lugar de Jesus na vida dos cristãos?! Um objeto sagrado de culto mágico, do qual nos tornamos dependentes, ou uma pessoa mesmo de quem fazemos memória e a quem procuramos seguir, tornando-nos livres até de "nós" mesmos?
"Somos fuliginosos, perplexos, desgarrados e tristes. Somos seres humanos, transmudados por Cristo, homem divino. Somos bichos da terra, tão pequenos, mas o fogo do amor de Deus mora em nós. Por isto, temos a possibilidade da louca alegria. Cristo bailarino. Cristo dançarino. O mais próximo Próximo. Ali, na esquina, está ele, e nos olha. Naquele bar, naquele beco, naquela masmorra, hospital ou cortiço. Onde a carne sofre, aí está o Cristo, crucificado. Onde a carne ama, aí está o Cristo, glorificado. Onde está o homem, aí está o Cristo, suprema possibilidade do humano. Aqui" (Hélio Pellegrino. A burrice do Demônio. Rocco, 1989). A igreja medieval associou Apolo com o Diabo, mas as crônicas de Pelegrino nos ajudam a equilibrar a imagem de Jesus, recuperando a sua dimensão apolínea: "Cristo, à cabeceira da mesa, nos convoca para o ágape. O pão, o vinho, a alegre - e leve - embriaguez apolínea. Cristo Apolo, elegantíssimo na sua túnica, pregando pelos campos...".
Jesus nos ajuda a ter fé direito, justo na sua cruz (afinal, o sentido de uma vida se revela na sua morte, e o Homão da Galileia não morreu de hepatite numa cama ou atropelado por um camelo na rua!), e não por causa de algum milagre, mas sim apesar da ausência do divino ("Por que me abandonaste?!"). E não uma crença esotérica na temperatura dos infernos ou no mobiliário do céu, porém uma aposta obediente no mistério da vida, que nos escapa - o que tira o medo de morrer e de amar existencialmente, e de perdoar até aos inimigos ("Eles não sabem o que fazem!").
Então se a gente olha pras imagens de Jesus em crucifixos barrocos ou mesmo em cinema e teatro que atualmente apresentam um Cristo sanguinolento e contristado, deve descobrir que se trata de uma mística penitencial (vejam o "Senhor Morto" aplaudido na Semana Santa e as Vigílias da Páscoa esvaziadas!), de uma espiritualidade cristã que nos veio com a colonização do mundo ibérico do século XVI, acentuando a intervenção divina (Providência) em todos os momentos e cultivando um apreço pela humanidade empobrecida e humilhada - principalmente no presépio e na paixão - do santo maior, Cristo, que se liga à aceitação resignada do sofrimento humano e da morte. Aí não se espera seguimento ético histórica e existencialmente recontextualizado, mas pura imitação estética do santo (lembram dos crucificados das Filipinas?!).
Atribui-se já a Cirilo de Jerusalém a afirmação de que "o mundo inteiro se encheu de pedaços do lenho da cruz", e de toda sorte essa mística que perdura entre nós remonta à Idade Média, quando "o poder da cruz de Cristo encheu o mundo", como disse Atanásio de Alexandria. Não é de hoje (o poema acima é do final do século XIX) que há protesto contra uma imagem do crucificado que parece não ter ressuscitado, e muito menos brincado e dançado em vida - como todo moleque judeu em festa de casamento. Mas nas igrejas e muito além de suas paredes, a pessoa e mensagem de Jesus renovam-se atualmente como uma "Beleza tão antiga e tão nova". Aliás, foi pensando no Cristo que Dostoievsky sentenciou "A beleza salvará o mundo"!
Precisamos recontextualizar e descolonizar as imagens sagradas que nos foram passadas em certas interpretações dos textos sagrados. Pois é preciso passar da dependência do milagre “sobrenatural” que traz benefício do “santo” imitado, para a crença na possibilidade de sermos igualmente “santos” e capazes de fazer das nossas vidas um milagre “mais-que-natural” para a vida dos outros – pelo amor, que é (de) Deus! Qual deve ser mesmo o lugar de Jesus na vida dos cristãos?! Um objeto sagrado de culto mágico, do qual nos tornamos dependentes, ou uma pessoa mesmo de quem fazemos memória e a quem procuramos seguir, tornando-nos livres até de "nós" mesmos?
"Somos fuliginosos, perplexos, desgarrados e tristes. Somos seres humanos, transmudados por Cristo, homem divino. Somos bichos da terra, tão pequenos, mas o fogo do amor de Deus mora em nós. Por isto, temos a possibilidade da louca alegria. Cristo bailarino. Cristo dançarino. O mais próximo Próximo. Ali, na esquina, está ele, e nos olha. Naquele bar, naquele beco, naquela masmorra, hospital ou cortiço. Onde a carne sofre, aí está o Cristo, crucificado. Onde a carne ama, aí está o Cristo, glorificado. Onde está o homem, aí está o Cristo, suprema possibilidade do humano. Aqui" (Hélio Pellegrino. A burrice do Demônio. Rocco, 1989). A igreja medieval associou Apolo com o Diabo, mas as crônicas de Pelegrino nos ajudam a equilibrar a imagem de Jesus, recuperando a sua dimensão apolínea: "Cristo, à cabeceira da mesa, nos convoca para o ágape. O pão, o vinho, a alegre - e leve - embriaguez apolínea. Cristo Apolo, elegantíssimo na sua túnica, pregando pelos campos...".
A exegese romanceada de Gerd
Theissen, em A sombra do Galileu (Vozes, 1991), é outro livro que guardo na
cabeceira, porque nos ajuda a perguntar: Jesus foi um revolucionário? Um risco
para a segurança? Ou apenas um sonhador, um poeta aldeão, um místico ambulante,
como tantos houve na época entre gregos e romanos? Então, um jovem judeu é pressionado por Pilatos
a colher informações sobre novos movimentos religiosos na Palestina e ele
constantemente esbarra na figura de Jesus, a quem tenta encontrar. Sai à
procura desse Galileu por toda parte, visando reconstruir uma imagem dele a
partir das histórias que ouve da boca do povo. Mas não consegue alcançar o seu
personagem a tempo: “... Sobre eles o sol descia. Espargia seus raios sobre a
cruz de Jesus e as dos zelotas, sobre o morto e os dois agonizantes. Projetava
sua luz sobre os soldados romanos e os espectadores que seguiam os
acontecimentos, alguns curiosos e outros
aterrorizados. Estávamos à
sombra do Galileu...”.
Pois bem, agora, essa
história literária, Em busca de Jesus de Nazaré, de Eduardo Hoornaert, vai
entrar com esses outros dois bons livros na minha mochila de mochileiro das
galáxias, no meu saco de seguidor do Caminho do Galileu. Pois ele me ajuda a
compreender que Jesus de Nazaré iniciou sua busca espiritual no grupo do
Batista, mas o abandonou, revelando sua liderança natural e demonstrando
insustentável liberdade (seu milagre providenciando vinho escandalizou puristas
e legalistas, como o lava-pés até hoje escandaliza devotos), ele é impulsionado
por afetividade e exibe um comportamento ético que espanta, ele sente
necessidade de se abrir para um divino sempre maior e incluir sempre mais
outros em seu cuidado, ele é condenado à morte em nome da moralidade vigente e
resguardada pelos anciãos e religiosos do Templo. Eduardo, muitas vezes com
passagens poéticas, ajuda a gente a recuperar uma estética jesuânica, na linha
do Poeta:
“Num meio-dia de Primavera
Tive um sonho como uma
fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à
terra.
Veio pela encosta de um
monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela
erva
E a arrancar flores para
as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se
longe
Ele mora comigo na minha
casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o
deus que faltava.
Ele é humano que é
natural.
Ele é o divino que sorri e
que brinca.
E por isso é que eu sei
com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus
verdadeiro”
(Fernando Pessoa/ Alberto
Caeiro).
Gilbraz Aragão é professor e Pesquisador no campo dos estudos de
religião na Universidade Católica de Pernambuco. É coordenador do Observatório
Transdisciplinar das Religiões no Recife
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