Frei
Betto
Howard Mumma conta em seu livro Albert Camus e o teólogo que o
autor de O homem revoltado teve, nos últimos anos de vida,
inquietações religiosas.
A uma plateia de cristãos, Camus (1913-1960) declarou em 1946: "Não parto
do princípio de que a verdade cristã é ilusória. Simplesmente nunca penetrei
nela" (Vie intelectuelle, abril de 1949, p. 336).
Camus foi à igreja, quando já era artista consagrado, em busca de
"algo", lembra Mumma. "Algo que não estou certo nem mesmo que eu
seja capaz de definir", teria admitido o escritor.
A vida e a obra de Camus nos deixam a impressão de que ele, malgrado a formação
cristã em Argel, era um cético. De fato, as atrocidades da Segunda Grande
Guerra derrubaram os ícones do autor de O mito de Sísifo –
Deus, o Partido Comunista, as instituições políticas, as ideologias. Passou a
considerar mito todas as verdades "ideais" ou "objetivas".
Teimou em não ir "mais além da razão", tenha o nome que tiver, raça,
Estado ou partido. Desencantado, resistiu entretanto à cicuta da
"náusea" sartriana, embora muitos insistam em situá-lo entre os
existencialistas.
Camus nunca se declarou discípulo de Sartre. Este chegou a manifestar que nada
havia em comum entre o seu pensamento e o do autor de O estrangeiro.
Uma de suas poucas frases que faz eco à filosofia existencialista consta
de O mito de Sísifo, quando o autor argelino se refere ao
"fastio que se apodera do homem diante do absurdo da vida."
Apegar-se a um valor espiritual era, para Camus, uma fuga do real. Nas águas de
Nietzsche, preferia a autenticidade à verdade. Acreditava, contudo, no ser
humano. Como escritor, assumiu a condição de testemunha do sofrimento dos
inocentes e, inclusive, do silêncio de Deus. Mas imaginar que, em seus últimos
anos de vida, Camus chegou a ter saudades da fé que não possuía é algo que só
não beira o insólito porque Mumma escreveu que Camus admitiu a possibilidade de
encontrar na fé um sentido para a vida. Por isso, manteve diálogos com o
teólogo e foi por ele introduzido na leitura da Bíblia, o que o teria conduzido
do ateísmo ao agnosticismo.
Prêmio Nobel de Literatura de 1957, Camus já havia experimentado o impacto do
testemunho evangélico, conforme disse a Mumma, na amizade que o unia a Simone
Weil, judia agnóstica, mística sem fé, filósofa que abandonou o conforto da
academia para mergulhar de cabeça no mundo dos pobres. Militante da Resistência
francesa, trabalhou como operária na Espanha. Solidária aos famintos,
permitia-se uma ração diária tão exígua que acabou compromentendo a saúde.
Morreu em 1943, aos 34 anos.
O epílogo de A peste comprova a fé de Camus no ser humano:
"(…) o doutor Rieux resolveu compor este relato que aqui termina, para não
ser daqueles que se calam, para testemunhar em favor desses pestíferos, para
deixar ao menos uma recordação da injustiça e da violência que lhes tinham sido
feitas, e para dizer simplesmente o que se aprende nos flagelos, que há nos
homens mais coisas a admirar do que a desdenhar".
Essa exaltação do humano marca a literatura de Camus, ensolarada pela ênfase na
felicidade, tributo de sua origem mediterrânea. Não é o destino que o
preocupava, mas o presente, a possibilidade de ser feliz agora. Seu time é o de
Montaigne, Voltaire e Rabelais, e não o de Pascal, Baudelaire e Rimbaud, que
oscilam entre a angústia e o desespero. "No âmago de minha obra há um sol
invencível", declarou ele em entrevista a G. d’Aubarède (Nouvelles
littéraires, nº 1236, 10/05/1951). "Não há vergonha em ser
feliz", exclamou ao entrevistador. "Há vergonha em ser feliz
sozinho", completou pela boca de Rambert, em A peste.
Camus está morto e é inútil indagar se, ao ser acidentado, corria na ânsia de
encontrar Aquele que procurava. Mas não há dúvida de que ele fez de sua
estética uma radical apologia da ética, conforme atesta este trecho de A
Peste: "Em resumo, disse Tarrou com simplicidade, o que me interessa é
saber como um homem se torna um santo. Mas o senhor não acredita em Deus,
respondeu-lhe Rieux. Justamente. O único problema concreto que hoje me preocupa
é saber se um homem pode tornar-se santo sem Deus."
Frei
Betto é escritor, autor do romance “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre outros
livros.
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