Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
A santidade pode
acontecer sem direta e necessária conexão com a moralidade, em especial dentro
dos parâmetros casuísticos como tem sido concebida. Juntamente com esta
afirmação está a convicção de que a santidade não ocorre necessariamente dentro
dos cânones habituais de uma instituição religiosa. Trata-se de uma
transformação completa da pessoa, a qual pode dar-se em diferentes
circunstâncias.
Santo é
alguém que tem o gênio de contemplar com atenção criativa a realidade e o
mundo, e encontrar em sua experiência de Deus uma resposta original às demandas
e interpelações que seu momento histórico e social levanta. A santidade
é, pois, um processo vital, que inclui não apenas uma experiência religiosa,
mas a conecta com a ética e a práxis.
Há poucos dias o
mundo recebeu com júbilo a notícia de que o Papa Francisco canonizara – ou
seja, proclamara santo da Igreja Católica – o arcebispo de San Salvador, Oscar
Arnulfo Romero. Pessoa discreta e moderada, recebera o episcopado na
expectativa de que se desempenharia dele da habitual forma discreta e modesta
que o caracterizava. E assim provavelmente seria a história de seu percurso
eclesiástico se não fosse alguém aberto ao Espírito que o animava. Quando
viu com seus olhos as mortes que ceifavam a vida de seu clero e seu povo,
percebeu que não podia apenas cumprir sua rotina de arcebispo. Tinha que
falar.
E assim o tímido
arcebispo denunciou as barbaridades que a violência fazia em seu país,
declarando-as contra a justiça, a paz e, sobretudo, contra o Evangelho de
Jesus. Suas homilias eram transmitidas por rádio e tonitruavam pelos quatro
cantos de seu país e para além dele. Os olhos do mundo voltaram-se para o
pequeno país oprimido que, graças à coragem profética do arcebispo, se fazia
visível por toda parte.
As forças da
violência e do mal que governavam o país não viram com bons olhos a atuação de
monsenhor Romero. Protestaram em El Salvador, em Roma e onde mais
puderam. Incomodava muito aquele arcebispo que teimava em não se recolher
à sacristia e insistia em ocupar o espaço público fazendo denúncias e censurando
os procedimentos da lei e da ordem.
Finalmente, Romero
foi morto. Atravessou-lhe o coração uma bala disparada por um atirador de
elite. Estava no meio da celebração da missa e acabava de consagrar o pão
e o vinho que, transubstanciados no corpo e sangue de Jesus Cristo, ressignificaram
sua morte. Era um mártir, ou seja, uma testemunha que foi até o fim na
confissão de fé do Reino anunciado por Jesus.
Na Igreja Antiga
seria aclamado santo no minuto seguinte. O martírio era um sinal mais do
que claro para declarar alguém plenamente unido a Deus e fiel a seu amor
incondicional. Alguém que dá a vida pelos outros devido à fé que lhe
anima a vida é certamente santo tal como o entende a Igreja Católica.
No entanto, Romero
foi assassinado em 1980 e apenas agora, em 2018 aconteceu sua
canonização. Por que uma espera tão longa diante de uma santidade tão
evidente? Qual a razão da demora? Que dúvida poderia pairar
sobre a vida daquele homem que o povo salvadorenho, assim como todos os
latino-americanos, já cultuavam como santo e cuja vida inspirava outras vidas
para além das fronteiras do continente?
Pareceria que
Romero não teria sido assassinado por ódio à fé. A razão de sua morte não
foi a defesa de uma formulação dogmática, ou de uma norma moral. Foi,
sim, a comunhão apaixonada com a dor dos outros, no caso de seu povo que sofria
perseguição e violência. Felizmente, o Papa Francisco entendeu que se Romero
não fora morto por ódio à fé, certamente o fora por seu exemplo heroico de
caridade. E no último dia 14 de outubro canonizou-o, declarando-o santo e
mártir da Igreja Católica.
Os santos têm em
comum a experiência de que todas as graças e conhecimentos a eles dados por
Deus os direcionam misericordiosamente para o sofrimento humano. Cada
santo ou santa não quer estar separado das dores e sofrimentos de seus
contemporâneos, mas entrar em profunda solidariedade e comunhão com eles. Sua
sintonia com Deus os leva não a ensimesmar-se em seu interior, mas a abrir
olhos e ouvidos aos clamores da realidade, aos sofrimentos do próximo, à
realidade dolorosa do mundo. E é aí que a mística se encontra com a prática da
caridade e tem como fruto a santidade.
O sim que
Oscar Romero disse a Deus teve início ali onde várias vezes a teodiceia
encontrou uma aporia e homens grandes e brilhantes como Albert Camus não
encontraram resposta a não ser a indignação e o antiteísmo: no sofrimento do
outro, sofrimento inocente e injusto que abraçou com paixão e compaixão.
Canonizando santos, a Igreja
quer dar testemunho ao mundo de que aqueles seus filhos viveram plenamente o
ethos do amor e da intimidade com Deus e o serviço dos outros. Assim aconteceu
com Oscar Romero, que hoje pode ser invocado como santo e cuja vida tornou o
mundo mais humano e mais de acordo ao sonho do Criador.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), sua mais
recente obra, entre outros livro
Nenhum comentário:
Postar um comentário