Por Eduardo Hoornaert
Em seu livro ‘A elite do atraso, da escravidão à Lava Jato’
(Leya, Rio de Janeiro, 2017), o sociólogo e historiador Jessé Sousa faz uma
impiedosa anatomia da história do Brasil, como comprova o subtítulo do
trabalho: ‘um livro que analisa o pacto dos donos do poder para perpetuar uma
sociedade cruel, forjada na escravidão’. Para muitos, imagino, as palavras de
Jessé Sousa soam ofensivas e até brutais. Mas, será que elas são falsas e devem
ser rejeitadas sem mais nem menos? Eis o que pretendo considerar com você no
texto que se segue.
1. O modo em que Jessé Sousa se expressa pode ser chocante,
mas se baseia em séria pesquisa histórica. Dizer que a sociedade brasileira
continua fundamentalmente marcada pela escravidão é uma afirmação de
inconfundível veracidade histórica. Durante quatro séculos, os colonizadores
portugueses se apoderaram de milhões de habitantes da África e os transportaram
ao Brasil (os números comumente avançados são de aproximadamente 4.000.000 de
pessoas) para se aproveitar de seus serviços em diversos projetos econômicos
(cana de açúcar, minas de ouro, café etc.) e serviços caseiros. Em consequência
disso, a ‘escravidão’ (como Jessé Sousa costuma dizer) se tornou constitutiva
do modo brasileiro de se viver em sociedade. Ela se perpetua até hoje, dos mais
variados modos, malgrado determinados gestos formais como a Abolição da
Escravatura no ano 1887, a Declaração dos Direitos Humanos em 1948 ou a mui
tardia e ocultada condenação da escravatura pela Igreja Católica em 1965 (numa
passagem nos documentos do Concílio Episcopal Vaticano II). Pode-se dizer que
ela continua sendo a ‘marca registrada’ do Brasil. O que escrevo aqui pode
parecer estranho, mas basta observar atentamente a vida diária para detectar
comportamentos que só se explicam recorrendo à herança constitutiva da
escravidão na formação do país. As empregadas domésticas, por exemplo, bem cedo
de manhã, enchem os ônibus nas cidades brasileiras. Enfim, estamos diante de
uma escravidão comumente ocultada e silenciada.
2. A história multimilenária da escravidão, desde os antigos
impérios dos caldeus, assírios, babilônicos, persas, egípcios, helenistas e
romanos, até os sistemas modernos oriundos da colonização europeia, demonstra
que a escravidão tanto vitima os escravos quanto seus amos. É relativamente
fácil detectar a vitimação dos primeiros na falta de autoestima, na obediência
serviçal, na mentalidade de submissão e na quase impossibilidade de lutar por
direitos humanos básicos. Resulta mais difícil perceber que os beneficiados
pelo sistema igualmente atingidos em sua dignidade, autoestima e sua capacidade
de encarar a realidade como ela é. Mesmo espíritos que, no passado, se
destacaram por sua inteligência, experimentavam dificuldades em visualizar a
escravidão com objetividade. Platão se limita a escrever que ‘uns nascem
livres, outros escravos’, Aristóteles fala em ‘escravos por natureza’ e mesmo o
grande teólogo cristão Agostinho afirma que a escravidão é ‘fruto do pecado’.
Nos raros textos antigos alusivos à escravidão, o tema da inferioridade
‘congênita’ do escravo aparece invariavelmente. Aqui chamo a atenção, de
passagem, para a originalidade da postura de Jesus de Nazaré que, vivendo numa
sociedade escravocrata, não só toma partido pelos escravos mais os exorta a
lutar por seus direitos (As ‘bem-aventuranças’).
3. É nessa história de longa duração que o Brasil se insere.
Os ‘explicadores do Brasil’, desde os pioneiros dos anos 1930 (Gilberto Freyre)
até os mestres professores dos anos 1950 (Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de
Holanda, Paulo Prado e outros), abordam, como não podia deixar de ser, a
temática da escravidão. Eles apresentam saídas, e vale a pena averiguar em que
elas consistem. O primeiro grande explicador do Brasil é o pernambucano
Gilberto Freyre, que em 1936 publica o livro ‘Casa Grande e Senzala’. O valor
do livro consiste em confrontar o brasileiro com a identidade binária que
caracteriza sociedades escravocratas: Casa Grande e Senzala. Esse brasileiro
contempla o mundo a partir da Casa Grande ou a partir da Senzala. Não há meio
termo. A narrativa de Freyre penetra fundo. Assim, por exemplo, o autor observa
que o sistema só se sustenta por uma sutil combinação entre ‘bondade’ e
crueldade. A paz, no domínio, só é garantida quando o Senhor da Casa Grande
consegue, ao mesmo tempo, ostentar bondade e tranquilidade e reprimir
impiedosamente qualquer sinal de revolta por parte da Senzala. A revolta na
Senzala ameaça o desabamento do sistema todo. Daí se compreende que o ódio ao
escravo é constitutivo da estrutura política e social do Brasil, como bem entendeu
o abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco (final do século XIX) quando
escreveu: ‘a bondade dos senhores não é outra coisa senão a submissão dos
escravos’. A explicação de Gilberto Freyre ainda hoje é atual. Ela descreve a
vida no país de modo simples e convincente.
De outro lado, o mestre pernambucano se embrulha quando
pretende apontar uma saída no sentido de ‘conciliar’ Casa Grande e Senzala. Ele
tira da manga o slogan ‘democracia racial’. O abismo entre senhores e escravos
se elimina por meio de um modo originalmente brasileiro de ‘democracia’, uma
democracia entre raças e culturas, uma ‘miscigenação’. Aqui, em contraste do
que se observa nos Estados Unidos, brancos não convivem pacificamente com
negros? O Brasil não é um país em que os conflitos sociais inexistem, por força
da mestiçagem e da peculiaridade de uma ‘civilização luso-tropical’? O Brasil
não é um país que desconhece revoluções e movimentos violentos? Um país
pacífico por natureza?
Hoje, as tensões políticas e culturais desmentem a tese
freyriana da ‘democracia racial’. O celebrado autor pernambucano, ao querer
solucionar o dilema brasileiro, nada mais fez que varrer o potencial violento
do pais em baixo do tapete.
Vinte anos após Gilberto Freyre surge em São Paulo uma nova
escola de ‘explicadores do Brasil’, desta vez na prestigiosa Universidade de
São Paulo (USP), modelo inconteste, durante décadas, do ensino superior
brasileiro. O ponto de partida é a ideia do ‘desenvolvimento’, em franca
ascensão por todo o Ocidente nos anos das descolonizações, cuja plausibilidade
se assenta em duas premissas. De um lado, ela tranquiliza os antigos
colonizadores (os europeus), e do outro lado apresenta uma saída plausível aos
países que se libertaram da colonização e que agora se tornam
‘subdesenvolvidos’ ou, num linguajar mais elegante, ‘em vias de
desenvolvimento’. A partir dos anos 1950 e por longas décadas, a ideologia
desenvolvimentista ganha corações e mentes. Acolhido pelos intelectuais da USP,
ele suscita uma nova geração de explicadores do Brasil, como Caio Prado Júnior,
Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado e outros, cujas ‘explicações’ entram que
nem uma luva no modo em que 20 % dos brasileiros (os capacitados a se
‘desenvolver’) gostam de ver o mundo. Enquanto isso, não se tem nada a oferecer
aos 80 % da população, a imensa maioria que não tem a mínima condição de
participar da festa do desenvolvimento por falhas básicas em termos de
conhecimento, condição financeira, capacidade de investir em algum negócio
produtivo e lucrativo, etc.
Os professores da USP, afinal, terminam se metendo no mesmo
impasse em que Gilberto Freyre já se meteu décadas antes, no momento em que
procuram responder à pergunta: como se opera a convivência entre classes
sociais tão divididas econômica e culturalmente? Sérgio Buarque de Holanda,
autor do famoso livro ‘Raízes do Brasil’, avança a imagem do ‘homem cordial’,
na realidade uma reedição e adaptação do tema da ‘democracia racial’ de
Gilberto Freyre: o brasileiro é ‘cordial’, supera os problemas por sua
capacidade de comunicação para além de fronteiras sociais, econômicas e
culturais, sua empatia e simpatia. Como Gilberto Freyre nos anos 1930, Sérgio
Buarque, nos anos 1950-1960, varre o problema em baixo do tapete, tapa o buraco
por meio de uma expressão que não diz nada: ‘o homem cordial’.
4. A atual agitação em torno da eleição presidencial de 28 de
outubro de 2018 demonstra que o brasileiro não é tão ‘cordial’ como Sérgio
Buarque diz, nem tão ‘democrata’ como Gilberto Freyre supõe. Não há mais como
varrer problemas não resolvidos em baixo do tapete. Eis o sentido histórico
desta eleição. Hoje fica claro: há de se enfrentar os problemas que o país
enfrenta, sem subterfúgios.
Talvez esteja na hora de aprender com a experiência de outras
nações que, embora em situações bem diferentes das brasileiras, passaram ou
passam por dificuldades de convivência.
O historiador alemão Eugen Rosenstock-Huessi (1888-1973, veja
Internet) tirou uma importante conclusão dos sofrimentos que afetou inúmeras
pessoas na época do surgimento do nazismo nos anos 1930. Ele chegou a afirmar
que o sofrimento constitui um componente fundamental da aprendizagem humana.
Numa conferência por ele pronunciada em 1967, ele afirmou de modo bastante
radical: ’o ser humano aprende sofrendo. O sofrimento é a única fonte de
sabedoria, não o cérebro’. E argumentou: ‘Descartes resolveu escrever por causa
dos horrores da Guerra dos Trinta Anos, Kant se tornou filósofo sob o impacto
da Guerra dos Sete Anos, Schopenhauer passou a refletir nos campos de batalha
de Napoleão e Nietzsche emergiu como pensador durante a guerra entre a França e
a Prússia’. A partir de considerações desse tipo, Rosenstock escreveu um ensaio
intitulado ‘As revoluções europeias e o caráter das nações’, no qual defendeu a
tese que um país só se torna um bom lugar para se viver após ter praticado ‘sua
revolução’. Ele citou exemplos como o da Inglaterra do século XIV, quando se
resolveu criar, ao lado da tradicional ‘House of Lords’ (parlamento dos donos
das terras), a ‘House of Commons’ (parlamento de gente comum). A Inglaterra se
tornou um país onde era bom viver a partir do momento em que os senhores das
terras começaram a dialogar com seus trabalhadores. A França fez sua famosa
revolução republicana no final do século XVIII, quando o ‘tiers état’ quebrou a
tradicional hegemonia da nobreza aliada ao clero. Na Alemanha, a imensa catarse
provocada pela Segunda Guerra Mundial fez com que o lema ‘Deutschland über
alles’ (Alemanha acima de tudo) fosse substituído por ‘Wir schicken das’ (‘nós
resolvemos isso’: palavras recentes de Ângela Merckel diante do problema da
imigração). Hoje, a Alemanha é um dos países mais democráticos do mundo. Na
Bélgica, os flamengos, de língua e cultura germânica, têm de conviver com os
valões, de língua e cultura latina. Queiram ou não queiram, pois não há outro
jeito. Na Espanha, Bascos e Catalães passam atualmente pela dura prova de uma
convivência nacional em torno de Madrid, pois sabem que o separatismo não resolve
nada. E assim por diante. Cada país tem seus problemas é só se torna um lugar
bom de se viver quando enfrenta honestamente seus problemas e encaminha
racionalmente uma solução, embora, diga-se de passagem, essa sempre seja de
caráter provisório. Em outras palavras, segundo o modo de pensar de Rosenstock:
há de se optar por sofrer menos, ou seja, por resolver os problemas do país com
um mínimo possível de sofrimento. Infelizmente, a história demonstra que a
humanidade nem sempre se mostra capaz de optar pelo menor sofrimento. A
história da Europa, nos últimos trezentos anos, que o diga: após a Guerra dos
Trinta Anos veio a Guerra dos Sete Anos, depois a Guerra franco-prussiana, a
Primeira Guerra Mundial e logo em seguida a Segunda Guerra Mundial.
5. Hoje, no Brasil, não dá mais para ocultar o sol com a
peneira. As fórmulas mágicas de um passado recente (‘homem cordial’,
‘democracia racial’, ‘Brasil não violento’, ‘Deus é brasileiro’, ‘país do
futuro’) não funcionam mais. Os donos do poder, por meio de seus instrumentos
comunicativos, espalham apreensões e temores, preconceitos e mentiras, ódios e
repulsas, simpatias e antipatias, com o intuito de lançar as pessoas num
labirinto de opiniões e sentimentos donde não conseguem mais sair. Um labirinto
de mensagens confusas, frequentemente contraditórias, emanadas de sistemas de
comunicação em massa que que têm como finalidade conseguir que as pessoas não
consigam ver com seus próprios olhos e pensar com sua própria cabeça. Pessoas
ingênuas, confusas, cheias de ‘verdades’.
De outro lado, a própria tensão política do momento parece
indicar que o Brasil esteja iniciando um ‘processo civilizador’. Não escrevo
‘civilizatório’, que é coisa bem diferente, como se explica no livro ‘O
Processo civilizador’, da autoria de Norbert Elias, cuja leitura aconselho
vivamente. Para além de atitudes, opiniões e explicações tradicionais, esse
processo repousa sobre uma dinâmica positiva na mente humana, que a impulsa à
melhor convivência e vida mais satisfatória em sociedade. Uma dinâmica que, no
caso do Brasil, impulsiona a convivência entre os 80 % e os 20 % dos quais
falei acima.
Ora, processos civilizadores são demorados, pois não se muda
um modo de pensar e de agir de um dia para o outro. Além disso, um processo
civilizador procede na base da sociedade, pois passa inevitavelmente pela
observação livre e desimpedida da cotidianidade. Uma observação capaz de mudar
um determinado modo de se encarar o mundo e de libertar a pessoa do labirinto
em que se encontra. Afinal, olhar livremente é só olhar, pensar livremente é só
pensar.
Nesse sentido, penso que os anos vindouros, na sociedade
brasileira, não serão fáceis, mas ao mesmo tempo podem abrir nova perspectivas.
Uma sociedade tão dramaticamente dividida entre os que têm e os que não têm,
não se transforma de um dia para outra, com vara de condão. Importa a vontade
de sair do labirinto em que os grandes meios de comunicação teimam em nos meter
e de adquirir uma postura livre e aberta diante do mundo em que vivemos. Na
impossibilidade de invisibilizar, esquecer, reprimir ou mesmo eliminar (segundo
um discurso brutal, em voga nos dias de hoje) a maioria da população, resta-nos
a aprendizagem de uma convivência capaz de resultar numa vida mais satisfatória
para muita gente.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da
Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na
América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo
nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
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