Por Leonardo Boff
Vivemos no Brasil nos últimos dois anos dois grandes golpes:
o primeiro, o impeachment e a deposição de Dilma Rousseff e neste ano de 2018 a
ascensão da extrema-direita com a eleição de Jair Bolsonaro a presidente do
Brasil.
Não foi Bolsonaro que ganhou. Foi o PT que perdeu e com ele o
Brasil.
1.Vivemos tempos sombrios e incertos
Vivemos tempos sombrios e incertos. Internacionalmente somos
motivo de vergonha e de escárnio. Não sabemos sequer que futuro nos espera. A
estrutura de governo que até agora se montou, particularmente no Ministério das
Relações Exteriores e no da Educação nos desenham um quadro perturbador. No
lugar da partidização dos cargos do Estado está ocorrendo uma militarização de
seus principais postos.
Os militares não precisaram dar um golpe. O ex-capitão Bolsonaro
os chamou para dentro do Governo. Como estamos sem horizonte, ficamos perplexos
e muitos tomados de desesperança.
2.. Resgate da utopia e das utopias minimalistas
Num contexto assim, antes de falar de esperança, temos que
resgatar a dimensão da utopia. A utopia não se opõe à realidade, antes pertence
a ela, porque esta não é feita apenas por aquilo que é feito e dado, o que
está aí palpável. Mas por aquilo que ainda pode ser feito e dado, portanto por
aquilo que é potencial e viável não é ainda visível.
A utopia nasce deste transfundo de potencialidades presentes
na história, em cada povo e em cada pessoa. O renomado filósofo alemão Ernst
Bloch introduziu a expressão principio-esperança. Ele é mais que a
virtude da esperança; emerge como uma fonte geradora de sonhos e de ações. O
princípio esperança representa o inesgotável potencial da existência humana e
da história que permite dizer não a qualquer realidade concreta, às
limitações de nossa condição humana, aos modelos políticos e às barreiras que
cerceiam o viver, o saber, o querer e o amar. E dizer sima formas novas ou
alternativas de organização social ou de plasmação de qualquer projeto.
O não é fruto de um sim prévio e anterior.
Hoje podemos afirmar que as grandes utopias, as utopias
maximalistas, do iluminismo (dar cultura letrada a todos), do socialismo (fazer
que o nós prevaleça sobre o eu) e também do capitalismo (o eu prevalecer sobre
o nós) entraram numa profunda crise. Nunca realizaram o que prometiam: nem
todos participam da cultura letrada, a maioria não assistiu a distribuição
equitativa e justa dos bens e a riqueza foi somente de pequenos grupos e não
das maiorias. Mais ainda: todas estas utopias degradaram a Casa Comum pela
super-exploração, e produziram um mar de pobreza, de injustiça social e de
sofrimento evitável no lugar de benefícios para todos.
Somos obrigados a nos volver paras utopias
minimalistas, aqueles que, não podendo mudar o mundo, podem, no entanto,
melhorá-lo.
As utopias minimalistas são aquelas que foram
implementadas pelos governos Lula-Dilma e seus aliados com base popular que
agora pelo governo de ultra-direita seguramente serão desmontadas.
A nível das grandes maiorias são verdadeiras utopias mínimas
viáveis: receber um salário que atenda as necessidades da família, ter acesso à
saúde, mandar os filhos à escola, conseguir um transporte coletivo que não tire
tanto tempo de vida, contar com serviços sanitários básicos, dispor de lugares
de lazer e de cultura e com uma aposentadoria suficiente para enfrentar os
achaques da velhice.
A consecução destas utopias minimalistas cria a base para
utopias mais altas: aspirar que a nação supere relações de ódio e de
exclusão,que os povos se abracem na fraternidade, que não se guerreiem, se unam
todos para preservar este pequeno e belo planeta Terra, sem o qual nenhuma
outra utopia seria possível.
3.Resgatar a força política da esperança
A vitória de Bolsonaro é fruto de uma imensa e bem tramada
fraude: suscitando o anti-petismo, colocando a corrupção endêmica no país, como
se fosse coisa só do PT, defendendo alguns valores de nossa cultura
tradicionalista e atrasada, ligada a um tipo de família moralista e de uma
compreensão distorcida da questão de gênero, alimentando preconceitos contra os
indígenas, os quilombolas, os homoafetivos, os LGBTI e divulgando milhões
milhões de fake news, caluniando e difamando o candidato Fernando Haddad.
Informações seguras constataram que cerca de 80% das pessoas que receberam tais
falsas notícias acreditaram nelas.
Por trás do triunfo da extrema-direita atuaram forças do
Império, particularmente, da CIA como o mostraram vários analistas da área
internacional, as classes dos endinheirados, herdeiros da Casa Grande, no
sentido de preservar seus privilégios, parte do Ministério Público, do grupo
ligado ao Lava-Jato, parte do STF e com expressiva força a imprensa empresarial
conservadora que sempre apoiou os golpes e se sente mal com a democracia.
A consequência é o descalabro político, jurídico e
institucional. É falacioso dizer que as instituições funcionam. Funcionam
seletivamente para alguns. Todas elas estão contaminadas pela corrupção e pela
vontade de afastar Lula e o PT da cena política. A justiça foi vergonhosamente
parcial especialmente o foi pelo justiceiro juiz federal de primeira instância
Sérgio Moro que tudo fez para pôr Lula na prisão,mesmo sem materialidade
criminosa para tanto. Ele sempre se moveu não pelo senso do direito, mas
pelo law fare (distorção do direito para condenar o acusado) e pelo
impulso de raiva e por convicção subjetiva. Diz-se que estudou em Harvard. Fez
apenas quatro semanas lá, no fundo para encobrir o treinamento que recebeu nos
órgãos de segurança dos USA no uso da law fare.
Conseguiu impedir que Lula fosse candidato à presidência já
que contava com a maioria das intenções de voto e até lhe sequestraram o
direito de votar. A vitória fraudulenta de Bolsonaro (por causa dos milhões de
fake news) legitimou uma cultura da violência. Ela já existia no país em níveis insuportáveis (mais de 62 mil assassinatos anuais). Mas agora ela se sente
legitimada pelo discurso de ódio que o candidato e agora presidente Bolsonaro
soube alimentar durante a campanha. Tal realidade sinistra, trouxe como
consequência um forte desamparo e um sofrido vazio de esperança.
Este cenário adverso ao direito e a tudo o que é justo e
reto, afetou nossas mentes e corações de forma profunda. Vivemos num regime de
exceção, num tempo de pós-democracia ( juiz no Rio, Rubens Casara). Agora
importa resgatar o caráter político-transformador da esperança e da resiliência,
as únicas que nos poderão sustentar no quadro de uma crise sem precedentes em
nossa história. Temos que dar a volta por cima, não considerar a atual situação
como uma tragédia sem remédio, mas como uma crise fundamental que nos obriga a
resistir, a aprender das contradições e a sair mais maduros, experimentados e
seguros para rasgar um novo caminho mais justo, democrático, popular e
includente para o Brasil.
Referimo-nos ao princípio esperança já citado anteriormente, que é aquele impulso que nos habita a sempre nos mover, projetar
sonhos e utopias e dos fracassos nos permitir tirar sábias lições e nos tornar
mais fortes na resiliência, na resistência e na luta.
As duas formosas irmãs da esperança
A Santo Agostinho (353-450 da era cristã), talvez
o maior gênio cristão e africano de Hipona, hoje Argélia, grande formulador de
frases, nos vem esta sentença: “a esperança tem duas belas e queridas filhas:
a indignação e a coragem; a indignação para recusar as coisas como
estão aí; e a coragem, para mudá-las”.
Nesta fase de nossa história, devemos evocar,
em primeiro lugar, a filha-indignação contra o que o
futuro governo de Bolsonaro está e ainda irá perpetrar criminosamente contra o
povo, contra os indígenas, contra os negros, contra os quilombolas, contra a
população do campo, contra as mulheres, contra os sem-teto, e os sem-terra
(MST) criminalizando-os como terroristas, os trabalhadores e contra os idosos,
tirando-lhes direitos e rebaixando milhões que da pobreza estão passando para a
miséria.
Nem escapa a autonomia nacional, pois o governo ofendendo
nossa soberania, está permitindo vender terras nacionais a estrangeiros e
mostrando um humilhante alinhamento à estratégia direitista e militarista do
governo norte-americano de Trump.
Se o governo ofende o povo, este tem direito de evocar a
filha-indignação e de não lhe dar paz. Deve denunciar, resistir e pressionar o
mais que puder para mudar dos rumos da política.
A filha-coragem se mostra na vontade de mudanças,
não obstante os enfrentamentos que poderão ser calorosos. É ela que nos manterá
animados, nos sustentará na luta e poderá nos levar a mudanças substantivas. É
imperioso voltar às bases populares, de onde nasceu o PT, criar escolas de
formação política, passar de beneficiarios de projetos governamentais de
inclusão a cidadãos ativos que se organizam, elaboram pressões, saem às ruas e
apresentam projetos alternativos aos oficiais que deem centralidade aos mais
pobres e vulneráveis e se decidam por um outro tipo de democracia participativa
e ecológica.
Lembremo-nos do conselho de Dom Quixote:”no hay que aceptar
las derrotas sin antes dar todas las batallas”: “Não devemos aceitar as
derrotas sem antes dar todas as batalhas”.
Há um dado que devemos sempre tomar em conta: é evocar o
primeiro artigo da constituição que reza: ”todo o poder emana do povo”.
Governantes, deputados e senadores são apenas delegados do povo. Quando estes
atraiçoam e não representam mais os interesses gerais mas os do mercado voraz,
e de grandes grupos corporativos nacionais e internacionais que só conhecem a
competição e desconhecem ao que é mais humano em nos que é a colaboração e
solidariedade, o povo tem direito de reclamar por um empeachment e buscar
formas legais de afastá-lo de poder.
As duas belas filhas da esperança poderão fazer sua
a frase do escritor argelino-francês Albert Camus, autor do famoso
romance A Peste: ”Em meio ao inverno, aprendi que bem dentro de mim,
morava um verão invencível”.
O povo brasileiro, em seu momento, assim esperamos, fará
sentir dentro de si este verão invencível, fruto de uma rebelde esperança. Será
o resgate da democracia contra a impostura do governo Bolsonaro e de seus
seguidores e um pilar para refundação de nosso país sobre outros valores e
sobre bases mais humanitárias e participativas.
A esperança não é apenas um princípio, quer dizer, um dado da
essência humana. Ela é também uma virtude cristã, junto com a fé e o amor. A
esperança, de certa forma, está na base da vida. Podemos perder a fé e
continuamos a viver. Podemos perder o amor de nossa vida e nos realizarmos num
outro. Mas quando perdemos a esperança, estamos a um passo do suicídio porque a
vida perdeu sentido e o futuro não possui mais nenhum horizonte com uma luz
orientadora. Dominam as trevas.
A esperança no Novo Testamento
Curiosamente, os Evangelhos nunca falam de esperança.
Logicamente, havia no povo eleito, a esperança pela vinda do Messias
libertador. Ela ocorre uma vez na epístola de São João (1 Jo, 3,3), 4 vezes na
epístola aos Hebreus e 3 vezes na primeira epístola de São Pedro. Mas é uma
virtude muito presente nos Atos dos Apóstolos (7 vezes) e frequentemente nas
cartas de São Paulo. Bem escreve na Epístola aos Romanos que Abraão teve “uma
esperança contra toda esperança, de ser pai de muitas nações”(4,18). Numa outra
passagem diz que “a esperança nunca engana pois o amor está em nossos
corações”(5,5).
Cristo nos salvou. Mas peregrinamos no mundo longe de Deus.
Por isso afirma São Paulo: “é na esperança que somos salvos”(Rom 8,24). Aos
Efésios fala que num certo tempo “vivíamos sem esperança e sem Deus”(2,12) e
agora pelo sangue de Cristo pertencemos ao Messias.
Embora não se use frequentemente a palavra esperança, a
realidade da esperança para os cristãos foi, é e será Jesus Cristo vivo, morto e
ressuscitado. Por ele Deus mostrou que a promessa de salvação e de
libertação da criação e da humanidade nunca desvaneceu. Nele, pela
ressurreição, estamos seguros de que a esperança jamais nos defraudará e que por
ela se antecipou o fim bom da criação, do destino humano e do universo.
Devemos somar as energias da esperança, daquela que está
sempre presente em nosso ser com aquela que é uma virtude cristã. Ambas se dão
as mãos. Elas nos enriquecem com as energias para suportar as aflições do tempo
presente mas muito mais nos dão a coragem para enfrentá-las e inaugurar um novo
caminho.
Talvez nunca em nossa história temos precisado tanto das duas
formas de esperança como agora, pois os tempos são maus e somos governados por
forças poderosas do ódio, da exclusão, da falsidade, da violência e da mentira.
Que o Espírito que é esperança dos pobres não nos deixe
desanimar mas nos acompanhe com sua Energia divina para sermos fiéis ao sonho
de Jesus. Ele veio para nos ensinar a viver os bens do Reino: do amor, da
justiça,da compaixão com os pobres, do perdão e da total confiança no poder de
Deus, “apaixonado amante da vida”(Sb 11,2 6).
(Palestra dada no dia 2 de dezembro de 2018 em Belo Horizonte
a um numeroso grupo de políticos que assumem a fé cristã como fonte de ética e
de inspiração para os ideais democráticos, grupo este organizado pelo
ex-deputado Durval Angelo de Andrade e atualmente membro do Tribunal de Contas
do Governo de Minas Gerais)
Leonardo Boff, teólogo e assessor de movimentos sociais.
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