Por Leonardo Boff
Nesta data de 22 de março, Dia Mundial da Água faz-se urgente
refletir sobre o fato inegável de que nenhuma questão hoje é mais importante do
que a da água. Dela depende a sobrevivência de toda a cadeia da vida e,
consequentemente, de nosso próprio futuro. Ela pode ser motivo de guerra como
de solidariedade social e cooperação entre os povos. Mais ainda, como querem
fortes grupos humanistas, ao redor da água poder-se-á e seguramente dever-se-á
criar o novo pacto social mundial que crie um consenso mínimo entre os povos e
governos em vista de um destino comum, nosso e do sistema-vida.
Independentemente das discussões que cercam o tema da água,
uma afirmação segura e indiscutível podemos fazer: a água é um bem
natural, vital, insubstituível e comum. Nenhum ser vivo, humano ou não
humano, pode viver sem a água. Bem afirma o Papa Francisco na sua encíclica
“Sobre o cuidado da Casa Comum”(2015): “A água potável e limpa constitui uma
questão de primordial importância para a vida humana e para sustentar os
ecossistemas terrestres e aquáticos”(n.28)
Da forma com que tratamos a água dependerá a forma que
ganhará a globalização. Daí ser importante discutirmos rapidamente a relação
entre globalização e cuidado da água.
E aqui temos que fazer uma opção prévia. Conforme for a
decisão, outras serão as consequências.
Ou bem abordaremos a relação globalização-água a partir da
globalização como ela está se dando hoje, com sua lógica interna, e então
teremos uma concepção de água e um cenário de nosso futuro ou bem trataremos a
relação a partir da água o que nos levará a desenvolver outra concepção de
globalização, com outra lógica, que resultará um outro cenário para o futuro da
vida e do ser humano na Terra.
Mas antes, consideremos rapidamente os dados básicos sobre a
água.
Existe cerca de um bilhão e 360 milhões de km cúbicos de
água na Terra. Se tomarmos toda essa água que está nos oceanos, lagos, rios,
aquíferos e calotas polares e distribuíssemos equitativamente sobre a
superfície terrestre, a Terra ficaria mergulhada na água a três km de
profundidade.
97% é água salgada e 3% é água doce, o que equivale a 8,5
milhões de km cúbicos. Mas somente 0,7% é diretamente acessível ao uso humano.
Destes 0,7% 20% se destinam à indústria, 10% à a agricultura. Somente o
restante, aos seres humanos e aos demais seres vivos.
Mesmo assim a água há superabundante no planeta. A renovação
das águas é da ordem de 43 mil km cúbicos por ano, enquanto o consumo total é
estimado em 6 mil km cúbicos por ano.
Há muita água mas desigualmente distribuída: 60% se
encontra em apenas 9 países, enquanto 80 outros enfrentam escassez. Pouco menos
de um bilhão de pessoas consome 86% da água existente enquanto para 1,4 bilhões
é insuficiente (em 2020 serão três bilhões) e para dois bilhões, não é tratada,
o que gera 85% das doenças. Presume-se que em 2032 cerca de 5 bilhões de
pessoas serão afetadas pela crise de água.
Não há problema de escassez de água mas de má gestão para
atender as demandas humanas e dos demais seres vivos.
O Brasil é a potência natural das águas, com 13% de toda água
doce do Planeta perfazendo 5,4 trilhões de metros cúbicos. Mas é desigualmente
distribuída: 70% na região amazônica, 15% no Centro-Oeste, 6% no Sul e no
Sudeste e 3% no Nordeste. Apesar da abundância, não sabemos usar a água, pois
46% dela é desperdiçada, o que daria para abastecer toda a França, a
Bélgica, a Suíça e o Norte da Itália. É urgente, portanto, um novo padrão
cultural
A água vista a partir da globalização
A globalização é um fenômeno complexo. Pode ser vista como
uma nova fase da humanidade e da Terra como Gaia. Trata-se do fenômeno
antropológico-cósmico do retorno dos povos depois da grande dispersão ocorrida
há milhões de anos a partir da África. Agora os povos e as culturas se colocam
em movimento e se encontram num único lugar, o planeta Terra. Junto a isso
cria-se uma nova consciência, planetária, com o sentido de que temos, Terra e
Humanidade uma mesma origem e um mesmo destino. Na verdade, somos a própria
Terra que sente, pensa, ama, venera e cuida. Já nos anos 30 Pierre Teilhard de
Chardin falava da irrupção da noosfera, como nova etapa ascendente da
espécie humana.
A globalização é um fenômeno histórico-social-político: as
info-vias propiciaram todo tipo de trocas entre os seres humanos, valores,
visões de mundo, formas politicas, tradições espirituais e religiosas transitam
de um canto a outro. Ela assume também uma dimensão ecológica: os fenômenos
naturais afetam a todos os seres humanos. Sentimo-nos todos interdependentes.
A globalização é, em primeiro plano, um fenômeno econômico e
financeiro. Representa a expansão sobre todo o planeta do sistema do capital
com seu sistema financeiro, especialmente especulativo, seus mercados de moedas
e de commodities. Representa a unificação do espaço das trocas e a gestação dos
sistema-mundo.
Este sentido de globalização é dominante. Ele se rege pela
lógica da economia de mercado que é a competição e a vontade de maximizar os
ganhos. Isso se faz mediante grandes conglomerados supra e multinacionais com
poder econômico às vezes superior a muitos países. A tendência é transformar
tudo em mercadoria e oportunidade de lucro e levar à banca dos negócios.
Em razão desta lógica se procura patentear os conhecimentos
científicos, bens da natureza, até genes como o que produz o câncer de mama.
Tudo é privatizável e feito mercadoria, sem limites. Como já em 1944 denunciava
o economista e pensador húngaro-norte-americano Karl Polaniy em seu famoso
livro “A grande Transformação”: de uma economia de mercado nos
transformamos numa sociedade se mercado. Tudo, tudo mesmo, até as coisas mais
sagradas vão ao mercado e ganham o seu preço.
A água, por causa de sua escassez é vista como recurso
hídrico e bem econômico. Ela é uma mercadoria e fonte de lucro. Contra esse
processo de mercantilização da água se insurge o Papa Francisco em sua já
citada encíclica “Sobre o cuidado da Casa Comum”: “O acesso à água potável e
segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina
a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros
direitos humanos”(n.30)
Há uma corrida mundial na privatização da água. Ai surgem
grandes empresas multinacionais como as francesas Vivendi e Suez-Lyonnaise , a
alemã RWE, a inglesa Thames Water e a americana Bechtel. Criou-se um mercado
das águas que envolve cerca de 100 bilhões de dólares. Ai estão fortemente
presentes na comercialização de água mineral a Nestlé e a Coca-Cola que estão
buscando comprar fontes de água por toda a parte no mundo.
Os organismos de financiamento como o FMI e o Banco mundial
condicionaram a partir do ano de 2000 a 40 países a renegociação da dívida e os
novos empréstimos sob a condição de privatizarem a água e seus serviços. Assim
foi com Mozambique em 1999 para receber 117 milhões de dólares. Em 2000 ocorreu
com Cochabamba na Bolívia. A empresa americana Bechtel comprou as águas e
elevou os preços a 35%. A reação organizada da população fez com que saissem do
pais.
Na Índia a água foi privatizada em muitas grandes cidades. A
carência de água potável da população é tão grande que os carros-pipas são
assaltados. Só conseguem chegar ao destino sob proteção policial.
A água está se tornando “fator de instabilidade no Planeta”.
Poderão ocorrer guerras para garantir o acesso à água potável. O Papa Francisco
advertiu em seu texto “Sobre o cudado da Casa Comum”: “È previsível que o
controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das
principais fontes de conflitos deste século”(n.31)
A visão mercantil da água distorce as relações
água-globalização
-pela competitividade desenfreada entre as grandes empresas
que impede acordos e assim prejudicam as populações
-pela primazia da rentabilidade
-pelo descaso ao princípio da solidariedade social e da
comunidade de interesse e do respeito das bacias hidrográficas que transcendem
os limites das nações.
-pelo desprezo do uso racional e equitativo da água como
ocorre entre a Turquia de um lado e a Siria e o Iraque do outro, ou de Israel,
da Jordânia e da Palestina, ou entre os USA e o Mexico ao redor dos rios Rio
Grande e Colorado.
A exacerbação da propriedade privada faz com que se trata a
água sem o sentido de partilha e de consideração das demandas dos outros.
Face a estes excessos a comunidade internacional, a ONU
estabeleceu nas reuniões de Mar del Plata (1997), Dublin (1992), Paris (1998),
Rio de Janeiro (1992) consagrou “o direito de todos a terem acesso à água
potável em quantidade suficiente e com qualidade para as necessidades
essenciais”.
A globalização vista a partir da água
Bem outra é a perspectiva
quando damos centralidade à água e a partir dela vemos a globalização. Aqui O
grande debate hoje se trava nestes termos:
A água é fonte de vida ou fonte de lucro? A água é um bem
natural, vital, comum e insubstituível ou um bem econômico a ser tratado como
recurso hídrico e como mercadoria?
Ambas as dimensões não se excluem mas devem ser retamente
relacionadas. Fundamentalmente a água é direito à vida, como insiste o Papa
Francisco e o grande especialista em águas Ricardo Petrella (O Manifesto da
Agua, Vozes, Petrópolis 2002).
Nesse sentido a água de beber, para uso na alimentação e para
higiene pessoal deve ser gratuita (cf. Paulo Affonso Leme Machado, Recursos
Hidricos. Direito Brasileiro e Internacional, Malheiros Editores, São Paulo
2002, 14-17). Por isso, com razão, diz em seu artigo primeiro a lei n.9.433
(8/1/97) sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos:”a água é um bem
de domínio público; a água é um recurso natural limitado, dotado de valor
econômico; em situação de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o
consumo humano e a dessedentação de animais”.
Como porém a água é escassa e demanda uma complexa estrutura
de captação, conservação, tratamento e distribuição implica uma inegável
dimensão econômica. Esta, entretanto, não deve prevalecer sobre a outra, ao
contrário, deve torná-la acessível a todos e os ganhos devem respeitar a
natureza comum, vital e insubstituível da água. Mesmo implicando altos custos
econômicos. Estes devem ser cobertos pelo Poder Publico em colaboração com a
sociedade organizada.
A água não é um bem econômico como qualquer outro. Ela está
tão ligada à vida que deve ser entendida como vida. E vida jamais deve ser
transformada em mercadoria. A água está ligada a outras dimensões culturais,
simbólicas e espirituais do ser humano que a tornam preciosa e carregado de
valores que, em si não têm preço.
Para entendermos a riqueza da água que transcende sua
dimensão econômica precisamos romper com a ditadura que o pensar
racional-analítico e utilitarista impõe a toda a sociedade. Este vê a água como
recurso hídrico. O ser humano tem outros exercícios de sua razão. Há a razão
sensível, a razão cordial e emocional e a razão espiritual. São razões ligadas
ao sentido profundo da vida. Oferecem não as razões de lucrar mas as razões de
viver e conferir excelência à vida. A água é vista como vida, com bem comum
natural, como fonte e nicho de onde há bilhões de anos surgiu a vida.
Como reação à dominação da globalização da água se
busca a republicanização da água. A água é um bem comum publico
mundial. É patrimônio da biosfera e vital para todas as formas de vida.
Importa proclamar o reconhecimento formal do direito à água
como direito humano universal em todos os organismos do local ao internacional.
Cabe ao Poder Publico junto com a sociedade organizada criar um financiamento
publico para cobrir os custos necessários para garantir o acesso à água
potável a todos.
Em função destas exigências se criou o FAMA – o Fórum Mundial
Alternativo da Água em março de 2003 em Florença na Itália. Junto a isso se
propõe criar a Autoridade Mundial da Água , uma instância de governo
publico, cooperativo e solidário da água a nível das grandes bacias hídricas
internacionais e de uma distribuição mais equitativa da água segundo as
demandas regionais.
Função importante é pressionar os Governos e as empresas para
que a água não seja levada aos mercados nem seja considerada mercadoria.
Deve-se garantir a todos gratuitamente no mínimo cerca de 50
litros de água potável e sã. As tarifas para os serviços devem contemplar os
diversos níveis de uso, se doméstico, se industrial, se agrícola, se
recreativo. Para os usos industriais da água e na agricultura, evidentemente,
água é sujeita a preço.
Incentivar a cooperação público-público para impedir que
tantos morram em consequência da falta de água ou em consequência de águas
maltratadas. Diariamente morrem 6 mil crianças por sede. Os noticiários nada
referem. Mas isso equivale a 10 aviões boeing que caem ou mergulham nos oceanos
com a morte de todos os passageiros. Evitar-se-ia que cerca de 18 milhões de
meninos/meninas deixem de ir a escola porque são obrigadas a buscar água a 5-10
km de distância.
Paralelamente a isso corre a articulação mundial para
um Contrato Mundial da Água. Seria um contrato social mundial ao
redor daquilo que efetivamente nos une que é a vida das pessoas e dos demais
seres vivos, indissociáveis da água.
Uma fome zero mundial, prevista pelas Metas do Milênio deve
inclui a sede zero, pois não há alimento que possa existir e ser consumido sem
a água.
A partir da água outra imagem da globalização surge, humana,
solidária, cooperativa e orientada a garantir a todos os mínimos meios de vida
e de reprodução da vida.
Ela é vida, geradora de vida e um dos símbolos mais poderosos
da vida eterna.
Leonardo Boff foi galardoado com um dr.h.c. em água, pela
Universidade de Rosário, Argentina, através da criada Cátedra da Água, em
2014 membro da Iniciativa Mundial da Carta da Terra
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