Por Marcelo Barros
Mártir
é um termo grego e significa testemunha. Nas religiões, é o título das pessoas
que arriscam a vida e sofrem perseguições por causa da fé. No entanto, desde antigamente,
se consideram mártires todas as pessoas que sofrem perseguições pela justiça e
pela realização da paz eco-social que a tradição judaico-cristã considera
“projeto divino para o mundo”. Conforme o evangelho, Jesus afirmou: “Bem-aventuradas as pessoas que sofrem
perseguições por causa da justiça, (se creem em Deus ou não, se pertencem a
uma Igreja ou não), porque delas é o
reino dos céus” (Mt 5, 10).
Há
poucos dias, completou-se um ano do martírio de três pessoas ligadas aos
movimentos sociais. Na noite do 14 de março de 2018, no centro do Rio de
Janeiro, foram metralhados a vereadora Marielle Franco e o seu motorista
Anderson Gomes. Três dias antes, no Pará, tinham assassinado o militante social
Pedro Sérgio Almeida, representante da Associação dos Caboclos e Quilombolas da
Amazônia. Ele cobrava da prefeitura de Macarema a falta de licença ambiental da
empresa Hydro que joga detritos nos rios do Pará. Um ano depois, outros irmãos
e irmãs deram a vida pela mesma causa, além das centenas de pessoas que
morreram, vítimas da Vale do Rio Doce em Brumadinho e de tantas outras que
estão em situação de riscos.
No
Brasil atual, defender o projeto da Justiça e lutar pela Vida significa correr
riscos e enfrentar a morte. No Brasil e em toda América Latina, há mais de 50
anos, milhares de pessoas, homens e mulheres, sofreram torturas e muitas foram
assassinadas por estarem inseridas na caminhada de libertação de nossos povos. A
cada ano, na vigília de 24 de março, em toda América Latina, recordamos o
martírio do bispo Oscar Romero, que deu a vida para defender os pobres de El
Salvador e foi assassinado por milícias da ditadura militar como alguém de
esquerda. Em nossos dias, o papa Francisco proclamou Oscar Romero como santo
oficial da Igreja. O papa também iniciou o processo de canonização do índio
Sepé Tiaraju, cacique que deu a vida na luta pela liberdade do povo guarani.
São sinais de que a Igreja volta a valorizar como mártires, não só os/as que
foram mortos por inimigos da fé, mas todas as que deram a vida para realizar o
projeto divino de um mundo mais justo e de paz.
Desde
os tempos antigos, também merecem o nome de mártires as pessoas que sofreram
perseguições e sobreviveram. Em 1986, no 6º Encontro nacional das comunidades
eclesiais de base, em Trindade, GO, as comunidades afirmaram: “Nós queremos nossos mártires vivos e não
mortos”. Assim, concluíram: nesses tempos de martírio, todas as pessoas que
trabalham pela justiça e pela libertação do povo têm de tomar cuidado e se
proteger, sem com isso desistir ou diminuir a intensidade da sua entrega.
Quem
é cristão não pode deixar de ligar essas mortes violentas que acontecem cada
dia ao martírio de Jesus. As Igrejas afirmam que, em cada eucaristia, atualizam
a doação de Jesus em sua cruz. No entanto, quem está realmente vivendo a paixão
e seguindo os passos de Jesus no seu testemunho de dar a vida pelos outros,
parece não ser tanto religiosos/as ou pessoas que dizem fazer isso por causa da
fé. Mesmo sem vinculação com a fé religiosa, eles e elas dão a vida pelas causas
da justiça e da libertação. Quando as comunidades de base afirmam: “Nós
queremos nossos mártires vivos”, estão gritando que precisamos de uma Igreja
toda ela martirial, ou seja, testemunha da justiça e da libertação no mundo.
As Igrejas
celebram a paixão de Jesus e muitos irmãos e irmãs, padres, pastores e
religiosos/as vivem uma vida de muita doação e entrega às causas do povo mais
empobrecido. Essa doação não é como um apêndice da sua fé e devoção a Deus. Ao
contrário, é o núcleo fundamental de sua espiritualidade no seguimento de
Jesus. Infelizmente, até hoje, muitos pastores e fieis ainda parecem não ligar
o que dizem de Deus e a luta pela justiça que Jesus proclamou como
bem-aventurança. Talvez por isso, muitas pessoas que vivem mais profundamente o
testemunho da solidariedade e da entrega de suas vidas no compromisso pela
justiça e pela libertação de todos prefiram nem falar de Deus. Vivem nas
periferias urbanas, na luta das mulheres, na causa dos povos indígenas e na
defesa das águas. E o mais estranho é que irmãos e irmãs ligados à Igreja, que,
por causa da sua fé, consagram a sua vida às causas da justiça e da libertação
de todos, nem sempre contam com o apoio e compreensão dos próprios pastores da
Igreja.
Provavelmente,
esse distanciamento da vida real das lutas do povo, por parte de muitos eclesiásticos,
vem do fato de que a teologia oficial das Igrejas ainda compreende a cruz e a
morte de Jesus como sacrifício religioso, oferecido a Deus para salvar as pessoas dos
seus pecados. É uma fé que separa a morte de Jesus de tantas outras mortes
violentas, ocorridas, a cada dia, pela justiça. O martírio de Marielle e de
tantos mártires da justiça, nos desafia a compreender a cruz de Jesus como
martírio e não como sacrifício. Aí sim, a fé na ressurreição de Jesus nos faz
ver além da morte. A caminhada da Igreja de base e sua inserção nas lutas de
libertação nos ensinam que o martírio não é apenas uma forma de morrer, mas, principalmente,
uma forma de viver. Somos testemunhas de que esse mundo tem remédio e apesar de
todas
as forças do mal, seguiremos nessa caminhada.
MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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