Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Há muita coisa digna de nota e de reflexão acontecendo no
Brasil: ruptura de barragens, enchentes, violência urbana, descoberta da rede
tentacular das milícias etc. E, no entanto, sinto-me movida a escrever
sobre o feminicídio. Talvez porque ele venha aumentando exponencialmente em
nosso país, que ocupa o quinto lugar no mundo em números absolutos dessa forma
de violência de gênero. A cada duas horas uma mulher é morta no Brasil.
No entanto, talvez o propulsor mais imediato de minha
perplexidade diante desse crime e seus terríveis e abomináveis rostos esteja em
um dos últimos casos registrados pela mídia. Aconteceu no último
fim de semana, exatamente após o dia internacional da mulher.
Jonathan escreveu uma mensagem amorosa para Lidiane, com quem vivia
há um ano. Postou-a nas redes sociais. Depois disso, à raiz de uma briga
motivada provavelmente por ciúmes, matou-a com várias facadas, atacando
igualmente a mãe da jovem. Lidiane morreu e a mãe se encontra
hospitalizada em estado grave.
Passa-se do amor ao ódio em poucas horas, agride-se aquela a
quem antes se abraçava e beijava, ataca-se até matar a companheira um dia
depois de declarar nas redes sociais que ela era “a mulher que qualquer homem
queria ter”. A casa onde a jovem estudante de direito morava com a mãe
tornou-se palco de tragédia e de derramamento de sangue.
Complexo é o feminicídio justamente porque nele as fronteiras
são movediças e dificilmente definidas. O amor e o ódio convivem, a
vítima e o algoz têm relação de proximidade e mesmo de intimidade. São
companheiros, namorados, amantes até que o ódio e a violência tomem a frente da
cena e a morte ocupe o lugar da vida.
O conceito é recente, dos anos 70. Foi cunhado pela
socióloga sul-africana Diana E. H. Russel. Com ele, a pensadora pretendia
contestar a neutralidade presente na expressão “homicídio”, que por sua
generalidade contribuiria para manter invisível a vulnerabilidade experimentada
pelo sexo feminino em todo o mundo. Enquanto os homicídios dolosos atingem todo
tipo de pessoas, idades e gêneros, o feminicídio diz respeito fundamentalmente
às mulheres, que em sociedades marcadas pelo patriarcalismo como a nossa, ainda
são consideradas – consciente ou inconscientemente – propriedade dos
homens.
Além disso, o feminicídio acontece em geral em casa, no
espaço onde o assassino e a vítima vivem relações familiares e íntimas. A
violência é despertada pelo ciúme, ou pela recusa da mulher em levar avante a
relação. E o lar, a casa, passam a ser palco de terror e agressões letais
dirigidas contra as mulheres, porque se rebelam ou não se acomodam na condição
subordinada na qual séculos de machismo as situaram.
Argumentos contra a concepção do feminicídio como fenômeno
social diferente do homicídio sustentam que a maioria dos assassinatos
acontecidos no mundo todo – cerca de 80% - têm como vítimas pessoas do sexo
masculino. É fato. Mas enquanto tais assassinatos acontecem no
espaço público, os feminicídios se produzem na calada da noite, no segredo da
casa e do quarto, no avesso do amor que se tornou agressão e terror. E se os
motivos para os homicídios são de diversos formatos e procedências, como
violência urbana, tráfico de drogas e outros muitos, os feminicídios acontecem
por ódio pelas mulheres serem o que são: mulheres. Representam a culminância de
um processo de agressões e intimidações, no qual a vítima é abusada em sua
inferior força física, em sua fragilidade e vulnerabilidade e em sua
sexualidade, que é subjugada, violada até o assassinato.
Diante desse quadro sombrio, a teologia cristã tem algo a
dizer. Naquele tempo, o rabi de Nazaré salvou a vida de uma mulher adúltera que
ia ser apedrejada por vários homens religiosos. Aceitou o carinho e a homenagem
de uma prostituta conhecida na cidade protegendo-a da condenação a que se
expunha por amor a ele. Deixou-se tocar por uma mulher hemorroíssa considerada
impura e, em lugar de rejeitá-la, curou-a. Em meio a esta realidade deplorável
em que seres humanos tiram a vida de outros – outras – por não aceitar sua
diferença, o Cristianismo pode contribuir com uma palavra própria e
diferenciada.
A prática de Jesus de Nazaré reflete a fé no Deus que criou a
humanidade à sua imagem e semelhança. A imaginação do Criador é fecunda e as
diferenças são condição indiscutível para que haja vida e vida em
abundância. Quando a diferença é sufocada e estrangulada para que não se
faça visível nem audível; quando a dominação já não consegue exercer seus
direitos abusivos e reage com violência assassina, é hora de saber que o
feminicídio é o assassinato não de uma ou outra das vítimas sobre as quais
lemos nos jornais ou até eventualmente conhecemos. É o assassinato do
futuro da humanidade e de toda a criação. Admiti-lo ou minimizar sua
importância é ser cúmplice desse assassinato que encurta os horizontes e
condena as novas gerações a uma lamentável esterilidade.
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de de “Mística e Testemunho
em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.
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