Por Eduardo Hoornaert
Na segunda semana de março 2019 faleceu o Frei Fernando de
Brito, da Ordem dos Dominicanos. Ele passou pelos horrores da repressão militar
que se abateu sobre o Brasil entre 1964 e 1982, ficou longamente preso e teve a
feliz ideia de anotar suas impressões e experiências em tiras de papel que
formaram um Diário que escapou ao controle dos carcereiros e que foi publicado
em 2009 pelos cuidados de seu confrade Betto, conhecido autor de numerosos
livros. Dou aqui a referência bibliográfica: Diário de Fernando, Nos
cárceres da ditadura militar brasileira, Rocco, Rio de Janeiro, 2009. 287
páginas (ISBN 978-85-325-2427-0). Escrevi uma resenha que foi publicada na
Revista Eclesiástica Brasileira, uns anos atrás, e da qual retomo aqui o
conteúdo, em memória de Frei Fernando.
Trinta anos atrás, ao prefaciar o livro ‘Cartas da Prisão’ de
Frei Betto (Civilização Brasileira, Rio, 1977), Alceu Amoroso Lima, ‘do fundo
de seus 83 anos’, comparou os dominicanos presos nos cárceres do sistema
militar aos hebreus na fornalha ardente que ‘cantavam no meio das chamas’,
segundo o livro do profeta Daniel. Imagem forte que evocava o entusiasmo de
Alceu por verificar que algo raro estava acontecendo com esses jovens de pouco
mais de vinte anos de idade (Tito, Fernando, Ivo e Betto, e talvez outros cujos
nomes não ficaram gravados na memória coletiva), um sonho que ele mesmo sempre
procurou realizar em grupo sem consegui-lo: conjugar religião e compromisso
social. ‘Coisa rara na história do catolicismo brasileiro’, escreveu Alceu, e ‘de
importância capital para o futuro tanto de nossa igreja como da nossa
civilização’ (p. 10). E, na página seguinte: ‘a passagem, por quatro anos,
desse grupo por sucessivos cárceres, um dia será História em ponto grande’ (p.
11). Mas adiante ele retoma o mesmo pensamento, mas com um toque de descrença:
‘É possível que as lições dessa mina de sabedoria (a experiência do cárcere)
sejam bem aproveitadas pelas novas gerações’ (p. 15), pois elas testemunham uma
‘vida totalmente vivida’. Mas o contrário também pode acontecer: a experiência
pode cair no esquecimento, como acontece tantas vezes na história da
humanidade.
Pertence a nós guardar viva essa memória. Num livro já
antigo, o escritor francês Maurice Halbwachs escreve que a memória é uma
atividade criadora, ou seja, que a preservação da memória depende das pessoas
que resolvem cultivá-la. Sem cultivo, a memória morre[1]. Até hoje, frei Betto tem sido o
principal ativador dessa memória, por meio de livros, artigos, filmes e
documentários. Ele tem viva consciência da importância do que aconteceu entre
1969 e 1973, não só para a memória dos frades dominicanos nem exclusivamente
para a memória do catolicismo no Brasil, mas para a sociedade como um todo.
Mesmo antes de ser preso, refletiu sobre o tema da perseguição. Neste momento
tenho à minha frente na mesa uma cópia de um trabalho semestral, elaborado por
ele para um curso de história do cristianismo administrada por mim na faculdade
de teologia Cristo Rei, em São Leopoldo, onde ele estudou um semestre. O plano
era que ele viajasse depois à França, escapando da repressão aqui no Brasil, o
que não se concretizou. O trabalho, datado em 4 de novembro de 1969 (a última
página ainda estava na máquina de escrever quando Betto foi surpreendido pelos
acontecimentos que conhecemos) é intitulado ‘Igreja e Perseguição’ e enfoca as
origens do cristianismo do ponto de vista da perseguição, desde Jesus até a
época de Diocleciano. Mais tarde, o tema foi retomado por Ivo Lesbaupin e
editado pela Vozes em 1975 sob o título ‘As bem-aventuranças da perseguição’.
Há muitos outros documentos relacionados com esses episódios e que hão de ficar
na memória, e é dentro dessa tradição memorial que nos chega agora o diário de
Fernando.
A diferença com as cartas de Betto é marcante. O diário de
Fernando está impregnado de dor e fragilidade, expressa um sentimento de
impotência diante do cataclismo que se abateu sobre sua vida, e isso lhe
confere um tom particularmente humano. Ele escreve que ‘seu grito se perde sem
eco no barulho exterior’ e que sente ‘a distância entre nossa indignação e a
impotência dos gestos’ (p. 78). Impotente e fragilizado, ele dá a impressão
de assemelhar-se à condição de um preso ‘comum’, perdido em meio a tantos
outros injustiçados e esquecidos. Sente alucinações na cela solitária (pp.
119-121): o subconsciente aflora e ele confessa que quase perde o equilíbrio
mental, sentindo-se abandonado e rejeitado no esgoto da ‘boa sociedade’:
menosprezado, rejeitado pelos homens
Um homem atormentado, sofrendo
Uma face velada para nós
Menosprezada, negligenciada (Is 53, 3-4).
Na p. 129, ele fala em alucinações: ‘Ouvimos vozes sem saber
donde vêm nem para onde vão. Já não somos os santos’. Seu refúgio é o cigarro
(p. 138) e o ‘poder da imaginação poderosa’ (p. 137). Fernando é o anti-herói,
ele experimenta a fragilidade do ser e escreve páginas de profunda humanidade.
Sofre de insônia e, quando consegue dormir, é habitado por sonhos medonhos.
Graças ao apoio dos colegas, conserva a autoestima e consegue finalmente ser
feliz no sofrimento. Percebe o distanciamento entre o projeto por ele abraçado
e a realidade em que vive. O diário de Fernando mostra que fragilidade,
sofrimento, autoestima e felicidade podem existir juntas. As letrinhas miúdas
desse diário não evocam o ‘conto de fadas’ evocado por Alceu em 1977, mas a dor
e o sentimento de abandono. Revelam a fragilidade humana e o quase esmagamento
psicológico diante da brutalidade e crueldade que se abate sobre o grupo de
jovens dominicanos, em muitos aspectos despreparados para as questões complexas
em que se veem envolvidos e pegos de surpresa nas malhas de um sistema
perverso. Como escrevi acima, Fernando mal representa a figura
heroica do preso político e seu texto não tem nada de triunfal.
A salvação de Fernando está no grupo. Na prisão, como em
nenhum outro lugar, a união faz a força. O grupo dos dominicanos tem uma coesão
que falta aos demais presos políticos. É dentro desse grupo que se celebra a
missa, um recurso de união que se utiliza com muita eficácia, por se tratar de
um rito que impõe respeito e congrega o grupo maior de encarcerados, inclusive
de comunistas ateus confessos. Na p. 158, Fernando conta que os dominicanos
rejeitam a missa de natal celebrada por Dom Lucas, já que não se permite a
presença de todos os presos à missa. Essas atitudes são importantes para a
sobrevivência psicológica do grupo de presos políticos e os dominicanos sabem
disso, pois enfrentam um jejum de 33 dias (alguns dizem 36) na luta contra as
sucessivas tentativas de se isolar os presos políticos e assim quebrar sua
força moral. A falta desse apoio manifesta-se no triste caso de Tito Alencar,
que – libertado após o sequestro do embaixador suíço - tem de abandonar o grupo
e enfrentar uma liberdade sem o consolo e o apoio psicológico dos que enfrentam
corajosamente as mesmas dificuldades. O texto de Fernando evoca a tristeza do
companheiro Tito na França, onde - por mais sinceros que tenham sido os gestos
de delicadeza e amparo para com sua pessoa - ele não encontrou mais um grupo
com o qual se identificar. A união constitui uma das estratégias básicas do
grupo de dominicanos, mas existem diversas outras. O diário todo pode ser lido
dentro da perspectiva de procura de estratégias possíveis ao longo dos três
anos de prisão, dentre elas algumas particularmente bem-sucedidas. Só alguns
exemplos: agir sobre o subconsciente das autoridades repressivas; ativar a famosa
‘repercussão internacional’; trabalhar em cima do caráter internacional da
igreja católica e de seu prestígio na sociedade; utilizar a mídia; indicar Dom
Paulo Evaristo como intermediário incondicional; utilizar a força de ritos
respeitados na sociedade, como a missa ou a recitação do Pai Nosso (a
Internacional Comunista não tem a mesma repercussão); apelar para o sentimento
do diretor do presídio (de Presidente Venceslau, por exemplo); atuar junto ao
capelão da penitenciária; criar um ambiente humano no presídio.
Em termos de estratégias de ação, dá para se perceber uma
evolução no pensamento dos dominicanos. Na página 34, Fernando relata o que se
pode chamar de estratégia clássica da esquerda dos anos 1960. Marighella parte
do pressuposto de que não existe nenhuma estratégia no bojo da sociedade
brasileira tradicional e, pensando em preparar o terreno para a guerra do
Araguaia, orienta os dominicanos a ‘preparar o povo através da pregação nas
cidades da região e principalmente no interior do Pará’ (p. 34). A coisa não
pode ser dita de forma mais clara. As pessoas que vivem na região não estão
‘preparadas’ e o ‘intelectual orgânico’ tem de vir de fora. Que contraste com
as últimas 66 páginas do diário, que tratam do período entre 8/6/1972 e
4/10/1973, quando os dominicanos ficam num presídio com presos comuns em
Presidente Venceslau, no interior de São Paulo. Aí eles são obrigados, pela
força das circunstâncias, a praticar o que Rubem Alves chama de ‘escutatória’.
Os textos referentes a esses últimos seis meses da prisão dos dominicanos são
os mais curtos, mais diretos e – em minha opinião - mais interessantes para
nossa reflexão hoje. Querendo ou não, os três frades têm de escutar e vão
descobrindo aos poucos o universo de presos comuns, suas reais capacidades de
ação e suas possíveis estratégias de sobrevivência e dignificação. O diário
termina mencionando algumas lindas experiências junto a presos comuns, na
cotidianidade da prisão: a administração de aulas de curso primário e as
dramatizações, como aquela mencionada na p. 261, em que Morcegão, o assassino,
dramatiza três ‘posições sociais’: assassino, vítima do assassino, policial.
Aqui estamos perto de Michel de Certeau e sua ‘Invenção do cotidiano’[2], perto de Wittgenstein e de tantos outros
intelectuais preocupados em descobrir e resgatar estratégias populares. Não se
insiste mais em ‘organizar o povo’ (Marighella), mas em descobrir pacientemente
a maneira como o povo se organiza e em captar as possibilidades concretas, os
jogos bem sucedidos, as artimanhas que os presos ‘comuns’ usam e que podem
servir de inspiração.
A experiência dos jovens dominicanos brasileiros dos anos
1969-1973 lembra a longínqua experiência de seus confrades, cinco séculos
atrás. Os primeiros quatro frades dominicanos que aportam à Ilha Espanhola
(hoje República Dominicana) em 1510, apenas 18 anos após a chegada de Cristóvão
Colombo, ficam escandalizados com o comportamento de seus compatriotas para com
a população local. Entre eles está Pedro de Córdoba, discípulo do famoso frei
Juan Hurtado de Mendoza, reformador da ordem dominicana em Salamanca na
Espanha, que impulsionou a reforma fundamental da ordem dominicana e deve ser
considerado pioneiro de um movimento que está na origem dos primeiros esboços
de direito internacional (ius gentium), tais quais se encontram na bula papal
‘Sublimis Deus’ de 1537 (os chamados ‘índios’ da América são seres humanos de
pleno direito e, portanto, iguais aos europeus) e – de maneira bem mais
elaborada – na teologia de Vitoria e na prática de Bartolomeu de Las Casas,
ambos dominicanos. Quando Pedro de Córdoba e seu colega Antônio Montesinos
chegam à ilha, eles se revoltam de tal forma que - no sermão dominical - acusam
as autoridades coloniais da ilha de homicidas[3]. A estátua de Montesinos, de boca aberta
acusando as injustiças coloniais, ainda pode ser admirada em Santo Domingo. Há
um elo histórico que liga os jovens dominicanos de 1969-1973 com seus jovens
confrades de 1510. Podemos ir mais adiante e ponderar: como os dominicanos
brasileiros do século XX são diferentes de seus colegas dos séculos da
inquisição! De inquisidores e acusadores passam a inquiridos e acusados. Hoje,
a ordem dominicana está empenhada em rever a pesada história de seu envolvimento
na inquisição. Vale a pena mencionar aqui o rigoroso exame de consciência que a
ordem está empreendendo acerca de seu passado inquisitorial. Tudo se iniciou
com um simpósio internacional sobre a inquisição na cidade do Vaticano, nos
dias 29 a 31 de outubro de 1998. Em seguida, o capítulo geral dos
frades dominicanos, reunido em Bolonha do 13 de julho a 4 de agosto de 1998,
recomendou que o instituto histórico da ordem ‘examinasse o papel representado
por alguns de seus membros nas injustiças do passado para ajudar a purificar
nossa memória’. Dentro desses propósitos se organizou em Roma o primeiro
seminário internacional sobre ‘Dominicanos e Inquisição’, nos dias 23
a 25 de fevereiro de 2002, cujas atas foram publicadas pelo instituto
histórico dominicano em 2004 e apresentadas por mim aos leitores da REB (2005,
995-998). Houve depois um segundo seminário sobre o mesmo tema em Sevilha
(março 2004) e em 2008 se publicou o terceiro volume de ‘Praedicatores
Inquisitores’, baseado no seminário realizado em Roma nos dias 15
a 18 de fevereiro de 2006. Alguns trabalhos desses seminários lembram o
diário de Fernando, como a evocação do caso de uma freira dominicana de Lisboa,
Maria da Visitação, presa em 1584 pela inquisição por ter tido revelações consideradas
demoníacas pela igreja e que diante dos inquisidores (da mesma ordem
dominicana!) teve a coragem de confirmar as visões e as imagens que lhe davam
coragem de prosseguir criticando situações injustas[4].
O diário de Fernando evoca memórias ainda mais antigas. A
memória cristã guarda o relato impressionante da prisão de uma matrona cristã,
Perpétua de Cartago, no início do século III. O documento ‘Paixão de Perpétua e
Felicidade’ é um dos escritos mais surpreendentes, não só da literatura
cristã, mas da literatura antiga em geral. É a primeira vez, em toda a
literatura da antiguidade, que uma mulher fala por si, sem mediação masculina.
Condenada ad bestias e reclusa numa prisão militar enquanto se aguarda a data
da execução, Perpétua sonha numa mistura de pesadelo e conforto. Como Fernando.
Apesar de ser condenada à morte e considerada vencida por seus perseguidores,
ela ingressa na morte com a palma da vitória na mão. Ela sonha com uma escada
de ouro, comprida e estreita, rodeada de armas perigosas e com um dragão ao pé
da escada. Perpétua pisa no dragão e assim chega em cima. Aí contempla um prado
com um pastor que ordenha ovelhas e lhe oferece coalhada de leite. Num outro
sonho, ela vê uma figura maior que a altura do anfiteatro onde será executada.
É um mestre dos gladiadores que lhe entrega um ramo verde com frutas douradas,
prenunciando sua vitória. Perpétua flutua no anfiteatro e esmaga a cabeça do
algoz, passa pela porta da vida e alcança a árvore da vida, o jardim, o paraíso
esperado. No auge da luta, aludindo à força que ela sente dentro de si, ela
grita: ‘facta sum masculus’, eu me tornei um homem. Pouco antes, ela tinha dito
ao pai: christiana sum, sou cristã. Eis um relato que merece ficar cultivado
pela memória cristã[5].
O diário de Fernando está destinado a ocupar seu devido lugar
dentro da variada literatura produzida em situações de repressão. O cuidado do
autor em anotar tudo evoca as notas furtivas de Soljenitsin (autor do livro ‘O
arquipélago Gulag’, de 1973), que é - como ele – um obcecado registrador de
palavras ao manejar lápis ou caneta quando em marcha com os demais
encarcerados, na hora do lanche e nos intervalos da corte de lenha no mato,
anotando tudo em pequenos cadernos e resmas de papel, sem margens e com um
mínimo de espaço entre uma linha e outra, exatamente como faz Fernando. O
diário faz igualmente pensar nas ‘Recordações da Casa dos Mortos’ (1862), nas
quais Dostoievski descreve as prisões na Sibéria, onde ele passou quatro anos.
Contudo, a mais impressionante obra produzida em cárcere é o romance Dom
Quixote (1575), redigido por Miguel de Cervantes durante seus cinco anos em
cativeiro. Dom Quixote é o preso sonhador. Ele nos lembra que somos maiores do
que somos, que podemos transcender a figura humana da mesquinhez e partir com
ele à procura da justiça perdida e da misericórdia que não se encontra em lugar
nenhum, não fazer o que se espera de nós e fazer o que de nós não se espera,
olhar para as estrelas e abraçar o mundo inteiro num sonho de fraternidade
universal.
[1] Maurice Halbwachs, Les Cadres
sociaux de la mémoire, 1925.
[2] Certeau, M. de, A Invenção do
Cotidiano, Vozes, Petrópolis, vol 1: 1994; vol. 2: 1996.
[3] Comblin, J. A profecia na
igreja, Paulus, São Paulo, 2007, 166-175.
[4] Institutum Históricum Fratrum
praedicatorum, Praedicatores Inquisitores III (Roma, 15-18 fev. 2006), Istituto
Storico Domenicano, Roma, 2008, 559-590.
[5] Brown, P., Corpo e Sociedade: o
Homem, a Mulher e a Renúncia sexual no Início do Cristianismo, Zahar Editores,
Rio de Janeiro, 1990.
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