Por Frei
Betto
O
fundamentalismo sempre existiu nas tradições religiosas. Consiste em
interpretar literalmente o texto sagrado, sem contextualizá-lo, e extrair
deduções alegóricas e subjetivas como única verdade universalmente válida. Para
o fundamentalista, a letra da lei vale mais que o Espírito de Deus. E a
doutrina religiosa está acima do amor.
Escolas
do sul dos EUA, e também algumas no Brasil, rejeitam os avanços científicos
resultantes das pesquisas de Darwin e ensinam que o homem e a mulher foram criados
diretamente por Deus. Tal visão fundamentalista nem sequer reconhece que Adão,
em hebraico, significa “terra”, e Eva, “vida”. Como os autores do Primeiro
Testamento não raciocinavam com categorias abstratas, à semelhança da gente
simples do povo, o conceito ganhou plasticidade no “causo” de Adão e Eva.
Todo
fundamentalista é um “altruísta”. Está tão convencido de que só ele enxerga a
verdade que trata de forçar os demais a aceitar o seu ponto de vista... “para o
bem deles”!
Há
muitos fundamentalismos em voga, desde o religioso, que confessionaliza a
política, ao líder político que se julga revestido de missão divina. Eles geram
fanáticos e intolerantes.
Uma
das melhores conquistas da modernidade é a separação entre a Igreja e o Estado.
Nada de papas coroando reis, como na Idade Média, ou presidentes consagrando a
nação ao Imaculado Coração de Maria, como fez Bolsonaro no Planato dia 21 de
maio.
Certa
vez perguntei a Fidel por que em Cuba o Estado e o Partido eram confessionais.
Ele estranhou: “Como confessionais?” “Sim, expliquei, pois são oficialmente
ateus. E negar a existência de Deus é tão confessional como afirmá-la.” Mais
tarde, o Estado e o Partido Comunista cubanos tornaram-se laicos, assim como
todos os estados e partidos modernos.
Reger
a vida política a partir de preceitos religiosos é um desrespeito a quem
professa outra religião ou nenhuma. Isso não significa que um cristão deva
abrir mão de suas convicções e dos valores evangélicos. Mas ele não deve esperar
que todos reconheçam a natureza religiosa de sua ética. E nem queira impor a
sua fé como paradigma político.
Há
que cuidar também para evitar o fundamentalismo laicista, de quem julga que
religião é uma questão privada, sem dimensão social e política. Afinal, todos
os cristãos são discípulos de um prisioneiro político. E a prática da fé
implica em defesa intransigente da vida, especialmente dos vulneráveis e
excluídos.
O
fundamentalismo laicista, que sempre relegou a religião à esfera da superstição,
é danoso por estimular o preconceito e não reconhecer que milhões de pessoas
têm em sua fé o paradigma de suas convicções e práticas. Corre-se o risco de
repetir o erro dos antigos partidos comunistas, que exigiam dos novos
militantes profissão de fé no ateísmo.
Reforçam
o fundamentalismo cristão todos os que são indiferentes ao diálogo
inter-religioso e consideram a sua Igreja como a única verdadeira intérprete
dos mandamentos e da vontade divinos. Por isso, é importante estabelecer os critérios
éticos que propiciam a base sobre a qual as diferentes Igrejas e religiões
devem dialogar e somar esforços. São eles: a ética da libertação em um mundo
dominando por múltiplas opressões; a ética da justiça nessa realidade
estruturalmente injusta; a ética da gratuidade nessa cultura mercantilista onde
imperam o interesse e o negócio; a ética da compaixão num mundo marcado pela
dor de tantas vítimas; a ética da acolhida, já que há tantas exclusões à nossa
volta; a ética da solidariedade nessa sociedade fortemente competitiva; a ética
da vida frente a tantos sinais de morte que ameaçam a natureza e os pobres.
O
fundamentalismo é irmão gêmeo do moralismo. E o moralista é capaz de ver o
mosquito no olho alheio, como observou Jesus, sem atinar para a trava no
próprio olho. No caso de certos políticos, quem sabe a solução para a paz seja
considerar a guerra um atentado ao pudor...
Frei Betto
é escritor, autor do romance “Minas do ouro” (Rocco), entre outros livros.
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