por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Quando se celebra um novo ano de vida, é costume haver parabéns, bolos e
velas. Mais se faz necessário quando a nova data inaugura uma década.
Assim sinto-me eu agora, quando entro nos 70 anos. Nem em minhas mais
longínquas e graves profecias exercitadas sobre mim mesma cheguei a pensar
concretamente nisso. E, no entanto, chegou. Tenho 70 anos.
O que dizer diante disso? Primeiro que não me sinto com essa idade
toda. Ou melhor, sinto-me e ao mesmo tempo não. Sim, porque olhando
para os lados e para trás vejo quanto já foi vivido e quantas testemunhas
existem que podem atestar de minha vida com eles e elas compartilhada em todos
esses anos. Igualmente quantas testemunhas já se foram. e me olham e esperam do
outro lado da vida.
Porém, não me sinto configurada pelo estereótipo de uma mulher – ou seja uma
senhora – de 70 anos. Quando olhava para minha avó, em sua sétima década
de vida, via uma senhora já bem avançada em anos, recolhida ao recinto do lar.
Minha mãe, ao entrar nos 70, era mais ativa que minha avó, mas mesmo assim
deixava ver pelo branco dos cabelos e pela postura corporal que o tempo
avançava sobre seu corpo.
Não me sinto com 70 porque minha vida tem mudado pouco em relação a anos
anteriores. E acontece hoje como quando tinha 50 ou 60. A não ser
um cansaço mais fácil e uma paciência escassa, trabalho e me movimento tanto ou
mais do que antes. Faço planos, curto a vida, tenho expectativas e acho
uma delícia fazer programa com pessoas mais ou mesmo muito mais jovens.
Dentre estes últimos, os preferidos são meus netos Carol, Maria Antônia, Cadu,
Lucas e Vicky. Eles me mantêm acesa e maravilhada, brigam comigo devido a
minhas ignorâncias tecnológicas, me contam casos e me fazem perguntas, tantas
perguntas, às quais adoro me esforçar por responder.
Por tudo isso e porque permaneço nessa tensão escatológica entre já me sentir
com 70, mas ainda não me experimentar velha, esse aniversário é sobretudo o
tempo da gratidão. Há muito que agradecer, muito mais do que
lamentar. É um rosário de agradecimentos que devem ser verbalizados hoje,
do lado de cá da fronteira que ultrapassei.
E o primeiro é dirigido a Deus, fonte da vida, meu princípio e fundamento, o
Senhor da história e das surpresas. Ele que deu uma reviravolta em minha
vida quando me fez assumir uma profissão que ninguém entendia quando eu
pronunciava: teologia. Perguntavam: biologia? E como você vai ganhar a
vida com isso? Aqui estou, aos 70 anos, trabalhando exclusivamente nisso
e vivendo. Aquele que me chamou e me enviou sabe por que o fez. Eu
teria lhe sugerido melhores escolhas, mas parece que ele tem seus critérios
independentes dos nossos. E cá estou, disponível como no primeiro dia.
O segundo é para a minha família. Órfã de pai aos 9 anos, filha única,
tive uma infância e juventude um tanto “despovoadas” de pessoas, crianças,
companheiros. Agradecidíssima sinto-me por ter podido formar a família
que é a minha, com meu marido há 50 anos. Igualmente por meus três
filhos, Lalá, Carlos e Candida, que habitaram meu corpo e dele saíram para
serem pessoas, únicas, amadas e encantadoras. Cada um com seu perfil e
sua particularidade, são três graças maiores dessa vida já longa. E obviamente
meus netos, crianças que me devolveram um sabor vital que já andava esquecido
pelos anos de maternidade e o ninho vazio dos filhos adultos. Poder ver e
ouvir vocês, rir junto e viver esse amor sem ansiedade, repousado e pleno, é
algo inestimável.
Em seguida, vêm meus alunos. Creio que elas e eles são os grandes
responsáveis pelo fato de o envelhecimento ser por mim sentido de forma amena.
Sua juventude, seus progressos, seus sucessos e êxitos acadêmicos me enchem de
orgulho e me fazem vibrar intensamente. Como é bom vê-los descobrindo
veios e explorando-os; lendo obras de autores difíceis e fazendo suas próprias
interpretações, diferentes da minha! Como é bom vê-los criar, pensar,
entender enfim conhecer! Nessa aventura do conhecimento eles são não
apenas aprendizes, mas companheiros em perpétuo e prazeroso diálogo.
Assim também meus colegas pesquisadores. Vejo-me em grupos de pesquisa e
de trabalho onde muitas vezes sou a mais velha. E é muito estimulante ser
assim, matriarca, decana, rejuvenescida pelas jovens e novas mentes que se
somam à minha a fim de produzir o saber.
Por último, mas não em último lugar, vêm os amigos. Amigos, como vocês
sempre foram importantes em minha vida! Mas como o são sobretudo agora.
Porque os filhos vão voar seus próprios voos, sonhar seus próprios
sonhos. Os alunos se formam e se tornam colegas. Ficam os
amigos. São elas e eles que estão aí, presentes e ativos, ensinando e
aprendendo essa derradeira e bela forma de amor que é a amizade. Com elas
e eles posso recordar momentos que só nós compreendemos. Posso fazer memória de
pessoas que já se foram e chorá-las em conjunto. Posso rir a bandeiras
despregadas com situações das quais só nós temos os códigos. Amigos,
poderia viver sem tudo, menos sem vocês. Merecem todos os agradecimentos do
mundo.
Sem medo, mas com certa expectativa, olho para a frente. O que me
reservará a vida nesses próximos tempos? Não sei nem posso saber, porém me é
permitido esperar. Que seja o que é: vida. Com mais experiência,
mais maturidade e ainda uma certa juventude de espírito que espero jamais
perder. Melhor idade? Pode ser. Apesar dos pesares e com todas as
alegrias.
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia
da PUC-Rio e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e
da compaixão" (Edusc).
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