Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Muitas vezes nos perguntamos, aqueles que
praticamos a fé cristã e ainda mais os que a estudamos nos cursos de Teologia,
por que a enorme importância dada a Maria, mãe de Jesus, dentro
do Cristianismo. As razões para essa perplexidade são muitas: a
pouca quantidade de textos evangélicos que a mencionam, as afirmativas da
exegese mais rigorosa de que esses mesmos textos não estão próximos ou afinados
aos mais antigos e, portanto, não podem ser remetidos ao Jesus Histórico, já
havendo recebido grande influência interpretativa das primeiras comunidades
cristãs. Acrescente-se o fato de alguns evangelhos pouco ou nada mencionarem
Maria, ficando sua presença explícita no texto restrita apenas a Mateus e
Lucas.
Por que então essa presença pequena, menor
quantitativamente nos textos revelados, foi se impondo de maneira tão
impressionante, a ponto de hoje, no Catolicismo e na Ortodoxia, ou seja, na
maior parte do mundo cristão, ter uma posição tão central não apenas na
revelação cristã, mas em tudo que se tornou o cristianismo histórico, a
posteriori dessa mesma revelação?
Parece-nos que a razão deve ser buscada não tanto
no Cristianismo, e sim no Judaísmo, que foi o berço do próprio Cristianismo.
Após a volta do exílio da Babilônia, quando o povo eleito, sob a guia de
Esdras, deu a si mesmo a reforma da Lei mosaica, fixando assim definitivamente
as bases de sua fé monoteísta, várias questões práticas para a identidade do
povo tiveram que ser firmemente estabelecidas. E uma delas foi um
maior rigor quanto à pertença ao povo. E isso estava ligado à linhagem e aos
pais biológicos daqueles que nascessem e pretendessem integrar o conjunto do
povo de Israel.
Consideraram então os que, reunidos em Assembleia,
tomavam decisões sobre o futuro de seu povo, que os filhos nascidos
de estrangeiras que não se haviam unido a Deus em aliança não seriam contados
entre os filhos de Israel.
A razão da Corte Mosaica é simples de entender. É
sempre possível ter certeza da mãe de uma criança. Já o pai, naquele momento,
seria muito difícil de determinar em caso de dúvida.
Além disso, Israel estava em situação vulnerável no
exílio, como uma nação em servidão. Não é razoável imaginar que os israelitas
teriam tido fácil acesso, por exemplo, a virgens babilônias, jamais tocadas por
homens. Ademais, as situações de estupros de mulheres eram muito frequentes
naquelas sociedades. Isso tornava ainda mais problemática a identificação da
criança. Em sendo assim, a Corte Mosaica optou pelo óbvio, a saber, a decisão
pela matrilinearidade, como única solução possível que asseguraria que a
criança era, de fato, israelita. Essas crianças, juntamente com suas mães,
foram despedidas pelos judeus, e retornaram para seus lares na Babilônia.
Tal matrilinearidade, enquanto identificação
positiva de identidade, pode ser fundamentada na Torá por diversos ângulos. E
foi o que a Corte Mosaica decidiu fazer para sustentar sua deliberação. A
fundamentação ocorre a partir de Deuteronomio 7,3-4 : “Não se casem com pessoas de
lá. Não dêem suas filhas aos filhos delas, nem tomem as filhas delas para os
seus filhos, pois elas desviariam seus filhos de seguir-me para servir a outros
deuses e, por causa disso, a ira do Senhor se acenderia contra vocês e
rapidamente os destruiria.”
Toda essa raiz histórica da
importância da mãe judia para a identidade do povo de Israel explica muitas
coisas. Como, por exemplo, a severidade na punição do adultério, que
representaria um perigo, uma vez que poderia gerar filhos não judeus, já que
não se sabia quem era o parceiro sexual da mulher surpreendida em
adultério. Mas também traz uma firmeza positiva em relação aos
filhos legítimos das judias. E gera um respeito imenso pelo lugar da
mãe na sociedade.
Na mulher mãe está a fonte da
vida e da vida consagrada a Deus, na pertença ao povo e na aliança irrevogável
com Deus. Em seu ventre repousa o segredo da Aliança. E
por isso esse ventre que gera e dá à luz, esses peitos que amamentam os filhos
do povo, serão louvados e cantados em todos os tons pelo povo de Israel. Como
em Lc 11,27: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que te
amamentaram!
É verdade que os evangelhos,
já escritos quando a comunidade cristã rompia com a exclusividade da conexão
com a sinagoga e acolhia em seu seio gentios de todas as procedências do mundo
antigo, mostram Jesus insistindo que muito mais bem aventurados que os que saem
do ventre de uma mãe judia, como ele, são os que ouvem a Palavra de Deus e a
põem em prática. No entanto, a comunidade cristã igualmente viu que
Maria, a mãe do Mestre, entrava nas duas categorias. Judia fiel,
levou no ventre e amamentou ao peito o filho que depois falaria às multidões,
faria milagres e anunciaria a todos o Reino de Deus. Porém, não
menos foi aquela que viveu plenamente a obediência, que significa ouvir a
Palavra de Deus e colocá-la em prática.
Mãe judia do homem
Jesus, a Igreja proclama Maria igualmente “Theotokos”, ou seja, mãe de
Deus. E é Paulo que proclama com força, em sua carta aos Gálatas,
que por ela chegou a plenitude dos tempos. “Na plenitude dos tempos Deus enviou
seu Filho nascido de mulher”. Maio é o mês dessa mulher. É também o
mês das mães, de todas aquelas que carregam em seus ventres os legítimos filhos
de um povo que espera a libertação e espera contra toda esperança.
Maria Clara Bingemer é professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros
livros.
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