Por Frei
Betto
Ainda é tempo de recordar que, ao discursar no Palácio do Planalto, no dia da
posse, Bolsonaro leu o discurso, não falou de improviso. O texto original,
distribuído previamente pelo novo governo, continha a afirmação de que
investimentos em educação poderiam atenuar as diferenças entre ricos e pobres
no Brasil.
Nosso país é o 9º mais desigual do mundo e o 1º na América Latina neste mesmo
ranking. Ano passado, segundo a Oxfam, a parcela de 1% mais rica da população
se apropriava de mais de 25% da renda nacional. E a soma da riqueza dos 5% mais
ricos era igual à soma da riqueza dos demais 95% da população.
Entre a população, 80% (ou 165 milhões de pessoas) sobreviviam com uma renda
inferior a dois salários mínimos por mês (R$ 1.996). E 0,1% da parcela mais
rica concentrava em mãos 48% de toda a riqueza nacional. Além disso, o Brasil é
o país mais violento do mundo. Em 2017, foram registrados 63.880 mil
assassinatos. A principal causa da violência foi a desigualdade social.
Eis a versão do texto lido por Bolsonaro: “Pela primeira vez, o Brasil irá
priorizar a educação básica, que é a que realmente transforma o presente e o
futuro de nossos filhos e netos, diminuindo a desigualdade social”.
Do alto do parlatório, na Praça dos Três Poderes, ele encerrou seu discurso em
“’filhos”. Omitiu a referência à redução da desigualdade social.
Assessores do presidente, questionados pela mídia, disseram ter sido um lapso.
“Ele deve ter pulado, até porque seria bom fazer referência à desigualdade”,
tentou explicar o general Heleno. “Não é fácil ler discurso assim. De repente,
as letras começam a embaralhar...”, concluiu o militar.
Ora, Bolsonaro não trai o seu viés ideológico. Sabe ser real a desigualdade
social, mas considera concessão ao “marxismo cultural” referir-se a esta
realidade. Porque, segundo a lógica dessa ideologia, falar da desigualdade
implica querer combatê-la. E para isso é preciso buscar as suas causas. E elas
são óbvias: o sistema predatório que torna os ricos cada vez mais ricos e os
pobres cada vez mais pobres.
Na abertura de Davos, neste ano, a Oxfam noticiou que, em 2018, os mais ricos
do mundo tiveram aumento de 12% em suas fortunas, enquanto os mais pobres uma
diminuição de 11% em suas rendas.
Já que não se pretende reduzir a desigualdade social, nem mesmo pela melhoria
da educação ou aumento da oferta de emprego (tema também omitido pelo
presidente), há que tentar dissimulá-la. Para tanto há vários recursos
ideológicos, já que não há milagre que faça desaparecer favelas, pedintes,
moradores de rua, corpos caídos nas calçadas, enfim, os 165 milhões de
brasileiros que sobrevivem com menos de dois salários mínimos mensais.
O recurso mais utilizado para naturalizar a pobreza é o religioso: “As coisas
são assim porque Deus quer.” Porém, quem vive conforme os preceitos da fé
alcança a prosperidade. Basta trabalhar arduamente, deixar de fumar e beber,
limitar o número de filhos (de preferência, o homem fazer vasectomia) e, se
necessário, praticar o aborto induzido, conforme defende Edir Macedo, cuja
Igreja é a favor de sua descriminalização.
O importante nesse viés ideológico é aceitar que a riqueza é uma bênção divina
e não se deve pretender reduzi-la através de políticas que propiciem distribuição
de renda. E a pobreza é sinal de maldição...
O único grande problema é que não se conhece povo que tenha suportado a
desigualdade por longo tempo. Há um momento em que a ostentação dos ricos é
recebida como ofensa pelos pobres. Então estes descobrem que são maioria, e têm
em mãos um poder que, até hoje, nenhuma força bélica foi capaz de superar.
Frei Betto
é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros
livros.
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