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quinta-feira, 18 de julho de 2019

COMO OS POBRES SUSTENTAM OS RICOS



por Frei Betto

          Em menos de 24 horas a França arrecadou 2 bilhões de euros para reconstrução da Catedral de Notre Dame, na qual fiéis, sacerdotes, bispos e cardeais manifestam a fé de que todos os seres humanos são filhos de Deus e merecem viver com dignidade.  A mesma França que desde 1957, ou seja, após 62 anos de independência de suas colônias na África, cobra delas 85% de suas reservas nacionais.
          São 15 países que pagam um salvo-conduto à França todo ano. Alguns são marcados por destruição, guerras e fome, como Benin, Burkina Faso, Costa do Marfim, Mali, Níger, Senegal, Togo, Camarões, República Centro Africana, Chade, Congo, República da Guiné e Gabão. Destes, seis figuram entre os mais miseráveis do mundo. 
          Seus governos são obrigados a colocar 60% das suas reservas no Banco da França, e só podem usar 15% ao ano. Caso retirem mais do que isso, devem pagar um ágio de 65% do valor. Ou seja, são penalizados por utilizarem o próprio dinheiro.
          Nas ex-colônias africanas, toda descoberta mineral pertence à França. Todo equipamento e treinamento militares têm de ser franceses, o que mostra quem lucra com as guerras locais. Já morreram mais de 350 milhões de inocentes por causas de guerras causadas pela pobreza naqueles países. 
          Até 2004, o Haiti também tinha de pagar essa mesma taxa  à França. Em 1825, quando a independência do Haiti foi reconhecida, o então presidente haitiano, Jean-Pierre Boyer, assinou um acordo com o rei francês Carlos X, pelo qual a importação de produtos da nação caribenha teriam redução de 50% nas tarifas alfandegárias, e o Haiti pagaria à França, em cinco parcelas, uma indenização no valor de 150 milhões de francos, equivalentes hoje a US$ 21 milhões. 
          Essa quantia seria para compensar os franceses por haverem perdido imóveis, terras e escravos. Caso o governo haitiano não assinasse o tratado, o país continuaria isolado diplomaticamente e ficaria cercado por uma frota de navios de guerra.
          Aquele valor equivalia às receitas anuais do governo haitiano multiplicadas por dez. Portanto, o Haiti teve que recorrer a um empréstimo para pagar a primeira parcela. Tomado de um banco francês... Assim começou formalmente o que se conhece como a “dívida da independência”. O banco francês emprestou 30 milhões de francos, valor da primeira parcela, da qual deduziu 6 milhões de francos em comissões bancárias.
          Com o restante 24 milhões de francos, o Haiti começou a pagar as indenizações. Ou seja, o dinheiro passou direto dos cofres de um banco francês para os cofres do governo francês. E o Haiti ficou devendo 30 milhões de francos ao banco francês, e mais 6 milhões de francos ao governo da França referentes ao valor que faltou da primeira parcela.
          Estabeleceu-se uma espiral absurda de dívidas para pagar uma indenização que continuou alta demais para os cofres do país caribenho, mesmo quando foi reduzida à metade, em 1830. Mais tarde, em 1844, o lado leste da ilha se declararia definitivamente independente do oeste, formando a República Dominicana.
          Desde então, o Haiti teve que pedir grandes empréstimos a bancos americanos, franceses e alemães, com taxas de juros exorbitantes que comprometiam a maior parte das receitas nacionais.
          Finalmente, em 1947, o Haiti terminou de compensar os franceses. Foram 122 anos pagando dívidas desde a independência. E restou ao país a triste realidade de também figurar entre os 20 países mais miseráveis do mundo.
          Notre Dame será reerguida, sem dúvida. E ali a glória de Deus será exaltada. Mas, e aqueles que foram criados à Sua imagem e semelhança, a população das ex-colônias? 
 Frei Betto é escritor, autor do romance histórico “Minas do ouro” (Rocco), entre outros livros.
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Artigo originalmente publicado no jornal O Globo.


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