Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Ela é jovem e branca. Nasceu em um país rico e nunca experimentou
dificuldades para viver. Pôde estudar em três universidades e aperfeiçoar-se na
carreira que escolheu: conservação do meio ambiente. Formou-se aos 23 anos e
navegou em barcos quebra gelos no Ártico. Ali foi tomando consciência das
necessidades do planeta e da humanidade. E começou a perceber até que
ponto era privilegiada.
Como declarou em uma entrevista: “Minha vida foi fácil, pude frequentar
três universidades, me formei com 23 anos. Sou branca, alemã, nascida em um
país rico e com o passaporte correto. Quando me dei conta, senti a
obrigação moral de ajudar a quem não tinha as mesmas oportunidades que eu
tive.”
E assim começou o
trabalho de Carola no Sea Watch.
A ONG alemã Sea Watch, como seu nome mesmo diz, se propõe a ser “vigilante dos
mares”. Apoia o resgate de refugiados no Mediterrâneo,
concretamente comissionando barcos de resgate. Esses barcos humanitários que
navegam no “Mare Nostrum” vêm efetuando o resgate de muitos migrantes
vindos das costas africanas e do Oriente Médio ameaçados de naufrágio e de
morte devido às condições terríveis em que se encontram, às vezes após muitos
dias à deriva, à intempérie e sem alimento. Depois de resgatá-los a bordo,
procuram levar os migrantes a algum porto seguro.
O Sea Watch 3, capitaneado por Carola Rackete, era, desde o último mês de
junho, o único barco humanitário que navegava a partir da Líbia em direção à
Europa. Foi quando a jovem capitã e sua tripulação resgataram 52 migrantes que
estavam à deriva em alto mar diante da costa líbia. Os náufragos foram levados
em direção a um porto seguro na Itália.
Antes do porto, porém, havia um obstáculo mais terrível que o mar encapelado,
que o sol causticante e a assustadora tempestade. Tratava-se do governo
italiano, tendo à frente o conhecido e temido ministro do Interior, Matteo
Salvini. Ele negou ao Sea Watch 3 o acesso ao porto de Lampedusa, no qual
pretendia atracar com sua combalida carga. Considerava ilegal o desembarque em
terras italianas. Alguns dos náufragos resgatados pelo Sea Watch 3 estavam em
condições tão precárias que foram levados à terra para receber tratamento de
urgência. Os 40 que ficaram a bordo enfrentaram uma longa espera de duas
semanas, e suas condições psicológicas encontravam-se no limite do suportável.
A capitã e sua tripulação vigiavam permanentemente e em seguidos turnos os
migrantes exauridos, temendo que houvesse suicídios a bordo. No dia 29 de
junho, Carola tomou a difícil decisão de atracar o barco mesmo sem
permissão. Sabia que corria um risco grande, mas diante da ameaça a
tantas vidas humanas sob sua responsabilidade atracou no porto de Lampedusa de
madrugada, protegida pela noite e a menor vigilância dos barcos
militares.
Os migrantes desembarcaram e foram alocados em furgões que os transportariam
para diferentes países europeus onde teriam asilo. Carola foi imediatamente
detida sob acusação de violência contra um barco de guerra, já que ao atracar
bateu contra uma lancha militar que tentou impedi-la de chegar ao porto.
Acusada de tráfico ilegal de pessoas e de entrada em águas italianas sem
permissão do Estado, a jovem foi presa. Em seu horizonte imediato, a possibilidade
de três a dez anos de prisão era uma realidade palpável e possível.
Outra mulher, a juíza Alessandra Vala, devolveu a capitã à
liberdade. Em sua sentença favorável, declarou que a ativista alemã
cumpria “o dever de socorro, que não termina no mero embarque a bordo de
náufragos, mas em sua condução a um porto seguro.” Livre, Carola continuou a
ser acusada de crime pelo ministro Salvini e seus apoiadores, o que acarretou
ameaças à sua vida e integridade.
Há poucos dias, reapareceu, porém. Retomou sua luta elevando a voz para pedir
aos países europeus que acolham os numerosos migrantes que se encontram na
Líbia sob a ameaça de grupos traficantes e em condições infra-humanas.
Relembrou a responsabilidade histórica dos países europeus por haver criado uma
estrutura de poder que torna a vida na África desumana e impossível, empurrando
grandes contingentes humanos à migração. Segundo a capitã, a Europa tem a
obrigação de acolher as vítimas da situação de perigo e risco que criou.
Carola Rackete, qual nova Antígona que desafiou as leis de Tebas para dar
sepultura digna a seu irmão, enfrentou proibições, ameaças e riscos para
assegurar a 40 pessoas o direito de viver. Sua bravura inspira e nos dá orgulho
de ser humanos. Ao mesmo tempo nos enche de esperança de que a humanidade
tenha realmente um futuro. A nós, mulheres, nos reafirma uma vez mais em nossa
vocação fundamental: a de guardiãs da vida. Bravo, Carola. E obrigada!
Maria Clara Bingemer
é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e
autora de Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora
PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros livros.
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