Por Marcelo Barros
Nos ambientes católicos, um dos assuntos que mais têm
suscitado discussões é o próximo Sínodo dos Bispos que o papa Francisco
convocou sobre a Amazônia. Ele se reunirá em Roma, no próximo outubro. De fato,
há dois anos, desde que o papa anunciou esse sínodo, criou-se a Rede Eclesial Panamazônica (REPAM) que reúne
missionários e missionárias dos nove países que compreendem a região amazônica.
Uma novidade é que o documento de trabalho, proposto para o Sínodo, resultado
da consulta e do diálogo com comunidades e grupos eclesiais de toda a região,
propõe que missionários e agentes de pastoral se coloquem em permanente escuta
e atitude de acolhida amorosa das tradições culturais e espirituais dos povos
amazônicos.
Muitas vezes, desde os tempos da colonização, a Igreja Católica confundiu
missão com conquista e no lugar de testemunhar o evangelho de Jesus, serviu aos
interesses dos impérios do mundo. As principais vítimas desse sistema foram os
povos originários que há milênios vivem nesse continente. Agora, o papa
Francisco e boa parte da Igreja, reunida nesse sínodo propõem uma evangelização
baseada no diálogo respeitoso e no reconhecimento da presença divina em todas
as religiões e culturas. De fato, essa postura é nova como posição de um papa e
de parte dos pastores, missionários e missionárias que atuam na região. No
entanto, desde os primeiros tempos da colônia, sempre houve cristãos e pastores
que, mesmo marginalizados pela cúpula eclesiástica e perseguidos pelo Império,
insistiram: a missão não pode estar ligada à colonização. Só é missão de acordo
com Jesus se partir do cuidado amoroso com as comunidades indígenas. Em toda a
América Latina, 17 de julho lembra o falecimento da figura mais conhecida que
defendeu essas posições. Foi Bartolomeu de las Casas, primeiro bispo de
Chiapas, no sul do México e defensor da dignidade dos índios contra o sistema
colonizador e escravagista. Era um frade dominicano que veio da Espanha para a
América no começo da colonização para ser senhor e feitor, mas, ao ver o
sofrimento dos índios, se converteu e se tornou missionário e teólogo para
lutar contra a escravidão. Defendeu a dignidade dos índios junto ao rei da
Espanha e escreveu o primeiro tratado de teologia e espiritualidade que ensina:
nos corpos dos índios escravizados, é o próprio Jesus Cristo que é explorado
pelos que se dizem cristãos. Atualmente, quase cinco séculos depois, podemos
lamentar que ao protestar contra a escravidão indígena, Las Casas não tenha
sabido denunciar o próprio sistema colonizador em si mesmo. E há quem o acuse
de ter aceito o tráfico e a escravidão dos africanos para substituir os índios
nas minas e engenhos da colonização. Não há provas disso. De fato, ao morrer em
1566, Las Casas não chegou a antever esse problema. O tráfico de africanos
sequestrados para ser escravos na América floresceu em época posterior, a
partir das últimas décadas do século XVI. Seja como for e mesmo com algumas contradições
inerentes à época, em nossos dias, os escritos desse grande missionário são
referência para uma nova concepção intercultural de missão e de leitura da
história a partir das vítimas e não dos vencedores.
No decorrer da
história da Igreja, esse modelo de missão se tornou conhecido como
“lascasiana”. Hoje, uma espiritualidade lascasiana rejeita uma missão cristã
que tenha como objetivo conquistar adeptos para a fé e a assume como diálogo
que valoriza a presença divina em toda realidade humana e respeita a
diversidade das culturas.
Ainda em nossos
dias, aqui no Brasil, povos indígenas continuam massacrados, vítimas de um
modelo de progresso que olha os índios como estorvo para a concentração de
terras, o agro-negócio e os lucros das grandes empresas. No Mato Grosso do Sul
os Guarani Kaiowá são perseguidos. Nos últimos anos, várias lideranças foram
assassinadas e continua sendo frequente, nas aldeias, um suicídio de jovens que
não aceitam ser escravos nas fazendas de soja da região, envenenados pelos
agrotóxicos que são obrigados a manipular.
A memória de
Las Casas nos chama a defender a vida e a liberdade dos índios por motivos
humanos e sociais, mas também por uma exigência espiritual da fé. Não podemos
aceitar projetos de desenvolvimento que não levem em consideração o respeito
aos povos que sempre foram vítimas da história e suas culturas religiosas.
Até hoje, nos
projetos missionários das Igrejas, continua existindo sempre o risco de certo
neocolonialismo cultural. Ainda aparece forte a centralização administrativa e uma
visão unilateral do pensamento humano. Esses perigos afetam a sociedade
dominante, mas também a atuação da própria Igreja. Em um diálogo com os índios,
na cidade de Puerto Maldonado, na Amazônia peruana, em janeiro de 2018, o papa
Francisco pediu aos líderes indígenas que ajudassem a Igreja a superar esses
perigos e a formar uma Igreja com rosto amazônico e indígena. Esperamos que o
Sínodo para a Amazônia siga esse caminho.
MARCELO BARROS
é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos
quais “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola.
Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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