Maria Clara Lucchetti Bingemer
Para Bruno
Albuquerque, em memória de Bernardo e Sarah
Talvez meu amor por esta cidade das montanhas da Serra do Mar esteja ligado a
algo mais visceral do que sua beleza ao mesmo tempo augusta e pacífica; a seu
clima ameno, tão convidativo quando o Rio ferve sob 40 graus à sombra.
Talvez não seja apenas as doces recordações dos verões passados aqui, quando
meus filhos eram pequenos e eu os via correr com amigos – tantos e tão queridos
– e saírem em bando e em segurança para festinhas e bailinhos de carnaval.
Não, não é apenas uma memória nostálgica de dias pacíficos e descansados,
vividos e desfrutados sem pressa e com sabor delicioso. Em meio a toda essa
teia de amores vividos na cidade florida e acolhedora está a figura de meu pai,
que adquiriu a casa que agora herdei. Quando aqui estou, lembro-me do
último verão que aqui passamos com ele saudável e forte, cuidando do jardim e
sobretudo da jabuticabeira que todo ano enchia os galhos com redondas e
saborosas frutinhas pretas. E sorvíamos a polpa e éramos
felizes.
Eu tinha oito anos nesse verão e minha infância foi duramente atingida por sua
morte alguns meses depois, levado prematuramente por uma doença cruel e
fulminante. Não voltei mais a Petrópolis por muitos anos. Já casada e com
meu segundo filho recém-nascido, revisitei a casa da minha infância e fui feliz
outra vez. E agora, já avó, aqui venho descansar e cuidar desta casa,
recebendo ocasionalmente a visita de filhos, netos e amigos.
Aqui estava no dia 15 de fevereiro, quando a água parecia querer carregar com
sua força e fúria a cidade da minha infância. Durante três a quatro horas
assistimos, impotentes, desde o interior da casa a cortina de água que não permitia
sequer ver o jardim e muito menos a calçada. Quando amainou, olhamo-nos
nos olhos, meu marido e eu, com a intuição silenciosa e pasma dos
sobreviventes. Pouco depois, a luz acabou. A casa estava intacta e nós
também. Mas ainda não sabíamos de toda a extensão da catástrofe que havia
retalhado a cidade que amamos.
Dois dias sem eletricidade, obrigada a ir ao café da esquina para tranquilizar
familiares e amigos, desmarcar compromissos de trabalho em home office
etc. Foi esse o tempo também de receber as notícias trágicas, que nunca
gostaríamos de ter lido e ouvido. As perdas, os desastres, mas sobretudo
as mortes. São notícias que dão ao mesmo tempo a medida do tamanho da
catástrofe, mas igualmente da capacidade de resiliência do ser humano e sua
incrível resistência em meio à adversidade.
São imagens que jamais abandonarão minhas retinas e minha memória. A mãe
cavando o barro com uma enxada em desesperada tentativa de encontrar o corpo da
filha adolescente. O pai que, constatando que o esforço das buscas ia na
direção de escavar os escombros em busca de corpos, passou a buscar por conta
própria o filho adolescente que tomara um ônibus e fora tragado pelo rio e se
encontrava perdido na rede fluvial da cidade. O jovem professor que celebrava o
primeiro dia do filho de cinco anos na escola e em minutos perdeu a casa e tudo
que possuía, porém mais que isso: os sogros, a esposa, o filho que levava ao
colo e a filhinha bebê de um ano de idade.
Como não se enlouquece vivendo uma situação dessas? De onde vem a força
que faz seres humanos que passaram por essa tragédia ainda conseguirem falar,
dar entrevistas à mídia, explicar, resistir e sobretudo...continuar? Além
desses, as centenas de desabrigados que não têm onde morar e dependem da
solidariedade alheia; como despertam a cada dia e seguem em frente?
Sentimento análogo era o que emergia olhando para a cidade bela e
querida. Suas ruas e seu centro histórico encontravam-se enlameados, com
muitos edifícios, lojas e casas totalmente destruídas. O cenário era de
guerra. Nos bairros onde havia construções nas encostas, derrubadas pelos
deslizamentos, o lixo misturava-se aos destroços e ao barro. E neste cenário de
guerra bombeiros e cães farejadores buscavam corpos. Fotos, objetos e
pertences se misturavam ao rastro da lama e da destruição, carregando consigo a
história de vida de tantos e tantas.
Petrópolis agora não é mais apenas o suave lugar da minha paz e a doce
recordação da minha infância e da infância dos meus filhos. É um lugar de
sofrimento e dor. A cidade que amei e amo está ferida e precisa ser
reconstruída. Tenho fé que assim será. O volume da solidariedade
que chegou após a chuva dá a dimensão de como essa cidade é amada.
Apesar da negligência e da incúria do poder
público, da falta de um planejamento urbano, aliado à mudança climática e às
tempestades de verão que todo ano acontecem e vitimam algum ponto dessa bela
serra fluminense, e a fizeram cair e deslizar sob a lama, ela
ressuscitará.
Para isso é necessária a persistência na solidariedade e igualmente na
reivindicação de um melhor planejamento urbano. É necessário um amor
forte e constante que crê ser a vida mais forte que a morte. Mas também e
não menos uma prática de amor que ampare os que estão desamparados e confia que
Deus não paira acima dos acontecimentos, sofre junto com as vítimas,
chorando seu pranto e dando força a seu coração.
Amando Petrópolis... sempre.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento
de Teologia da PUC-Rio e autora de “Experiência
de Deus na Contemporaneidade: Entre o viver e o contar” (Editora Paulinas), entre outros livros.
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