Frei Betto
A história da humanidade é marcada por
tiranias. E por ousados homens e mulheres que lideraram a resistência a elas,
de Judite, que decapitou o general assírio Holofernes, como descreve a Bíblia,
a Rosa Parks, pioneira no desafio ao racismo estadunidense; de Jesus a Nelson
Mandela, de Spartacus a Fidel Castro.
O capitalismo sempre conviveu muito bem
com tiranias. Inclusive tratou de implantá-las em vários países, através de
golpes de Estado e assassinatos de políticos progressistas, como Salvador
Allende no Chile. A própria estrutura do sistema é tirânica: o poder político é
virtualmente democrático, mediante eleições periódicas, mas o poder econômico,
que tudo comanda, persiste concentrado em mãos de poucos que, por sua vez,
monitoram o poder político.
É pura falácia celebrar, como democrático,
um país cujas leis defendem e protegem a concentração da riqueza em mãos de uma
elite, enquanto a maioria da população carece de bens essenciais à vida
digna, e a pobreza e a miséria se alastram a olhos vistos.
No livro “O regime dos príncipes”, do
século 13, Tomás de Aquino escreveu: “Se o que espolia um homem ou o
escraviza ou mata é merecedor da pena máxima, que é a pena de morte no juízo
dos homens, e a condenação eterna de Deus, que maior motivo se há de
considerar para o tirano merecer os piores castigos, posto que ele, a todos e
em toda parte, atenta contra a liberdade de todos e mata quando tem
vontade! Inflados de soberba, afastados das mãos de Deus por seus
pecados e iludidos por seus aduladores, raras vezes se arrependem, e ainda mais
raramente pensam em reparar os danos” (Livro 1, cap. 11).
O frade dominicano advertiu: “O domínio dos
tiranos não pode ser duradouro, porque é odioso para o povo. Não pode manter-se
muito tempo (...) E, chegado o tempo (...) para levantar-se contra o tirano
(...) o povo apoiará o insurgente e não ficará sem vitória o que luta com
apoio do povo” (Livro 1, cap. 10).
No século 15, o teólogo franciscano Jean
Petit, ao defender o Duque de Borgonha, João Sem Medo – que assassinara o
tirano Duque de Orléans – se apoiou em Santo Tomás para provar a licitude
do tiranicídio. O Concílio de Constanza (1414-1418) se negou a condenar o
direito ao tiranicídio. Para Tomás de Aquino, a essência da tirania é o
exercício do poder em proveito de quem governa e em detrimento dos direitos do
povo.
Séculos depois, o papa Paulo VI, na
encíclica “Populorum progressio” (1967), admitiu o emprego da violência contra
uma tirania prolongada e evidente, que atenta gravemente contra os direitos
fundamentais da pessoa, e provoca graves danos ao bem comum (n. 37).
Tomás de Aquino, na “Suma teológica”
(questão 42), reconhece a licitude da revolução, mas não admite o
princípio de que os fins justificam os meios. Ações terroristas carecem de base
ética. Se a vitória da revolução trouxer ao povo mais sofrimento que a tirania,
então a revolução é ilícita. Qualquer mudança que signifique a substituição de
uma tirania por outra deve ser descartada.
O princípio da não violência se impõe. Mas
não de modo absoluto. Aqueles que defendem os direitos ao povo devem insistir
na luta por meios pacíficos e democráticos. No entanto, quando os tiranos e
seus cúmplices suprimem todas as vias democráticas e reprimem duramente seus
opositores, não resta alternativa ética senão o povo se defender, pelas armas,
da opressão que sofre. O primeiro tiro é sempre disparado pelos inimigos do povo.
Contudo hoje, frente a governos como o do Brasil, a luta armada não
se justifica, e só interessa a dois setores: fabricantes e traficantes de armas
e defensores da volta à ditadura militar.
Com a atual fragilização da democracia,
fortalecida pelo crescente desinteresse das novas gerações pela política e o
descrédito dos partidos, governos tirânicos apoiados por neonazistas e
milicianos ou paramilitares voltam a ocupar o proscênio em vários países.
É hora de os setores progressistas e de esquerda
reaprenderem a se firmar como alternativas confiáveis e, assim, conquistar
corações e mentes – voltar ao trabalho de base, adotar a metodologia de
educação popular, aprimorar-se no uso das redes digitais e formular projetos de
governo que contribuam para organizar e mobilizar a esperança.
Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do poder” (Rocco), entre outros
livros. Livraria virtual: freibetto.org
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Frei Betto é autor de 70 livros, editados no Brasil
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