Marcelo Barros
Neste VIII
domingo do tempo comum, (ano C) o texto do evangelho lido nas comunidades
conclui as palavras de Jesus no discurso da planície. Esta palavra conclui com
uma orientação para as pessoas que têm função de “guias” das comunidades. Esse
texto do evangelho é construído sobre sentenças que Jesus teria dito aqui e
acolá, certamente, em contextos diferentes e que o evangelho uniu em um só
discurso. Juntou uma sentença de Jesus a outra através de “palavras-chaves”
como medida (v 38), olho (v 39), árvore (v 43- 44), boca, casa e assim por
diante. O importante é a prática. A Ética se verifica em seus frutos (Cf. Tg 3,
12; Lc 13, 6- 9). Esse é um ensinamento judaico, presente nos livros
sapienciais, nos quais a pessoa justa é comparada a uma árvore que dá muito
fruto e é irrigada pelas águas divinas (Cf. Salmo 1; 92, 13- 14; Ct 2, 1- 3;
Ecli 24, 12- 27).
Talvez, em uma
redação primitiva, este texto do evangelho de hoje fazia parte de uma espécie
de “diretório” ou de “carta de orientações” que as
comunidades cristãs elaboraram para pessoas que vinham de outras religiões e
costumes querendo ser da comunidade. São orientações éticas e não doutrinais. Nessas
normas de Jesus, a preocupação é a ética da relação entre as pessoas que
integram a comunidade, principalmente a Ética de quem tem função de coordenação
ou animação do grupo.
Conforme o
evangelho de Mateus, Jesus chama de cegos os fariseus e escribas do templo de
Jerusalém. Chama-os de “guias cegos”. Lucas aplica essa palavra aos próprios discípulos
e principalmente aos ministros das comunidades. Até hoje, corremos o risco de
achar que cegos são sempre os outros e não nós mesmos.
Quase todas as
tradições espirituais consideram que uma base importante para a espiritualidade
é o conhecimento de si mesmo. Segundo o evangelho de Tomé, (texto cristão do
século II), Jesus disse: “Quem conhece todas as coisas, mas não
conhece a si mesmo, de fato, não conhece nada” (n. 67). Essa é uma afirmação
radical e corajosa. Santa Tereza de Ávila afirmava que “um dia
de humilde conhecimento de si mesmo é melhor do que mil dias de oração”. Na Idade Média,
o Mestre Eckhart declarava: “Não se pode conhecer a Deus se antes não se
conhece a si mesmo”[1].
Quem trabalha por
justiça social e quem se empenha em transformar o mundo não pode ignorar este
aspecto mais pessoal da transformação. O Mahatma Gandhi, em meio a toda a sua
luta não violenta contra o colonialismo e pela independência da Índia,
afirmava: “Comece por você mesmo/a a transformação que quer para o mundo”.
De outro modo,
Jesus diz a mesma coisa: “Primeiramente tire a trave que está no seu olho
para poder tirar a palha que está no olho do seu irmão”. É uma questão
de honestidade pessoal. Todo mundo tem problemas e limitações. Jesus pede que
procuremos ser coerentes e não exijamos dos outros o que nós mesmos não
cumprimos. Isso seria hipocrisia, falsidade. Hipócrita é quem pretende ser o
que não é.
Nessas palavras
do evangelho, Jesus vai direto ao ponto fundamental: todos nós temos alguns
pontos cegos. Carregamos intimamente aspectos, sentimentos e tendências que nem
sempre conseguimos ver com clareza e, por isso, não somos honestos e lúcidos
com relação a aquilo. Exigimos dos outros o que nós mesmos não cumprimos. É
importante procurar clarear esses pontos.
Se alguém pensa
que tem clareza total sobre si mesmo, é duplamente cego porque é cego até em
relação à própria cegueira. É o pior cego: que não vê e pensa que está vendo. No
evangelho de João, no episódio do cego de nascença, ao falar dos fariseus,
Jesus diz que se eles assumissem sua própria cegueira, não teriam culpa, mas
como se vangloriam de ver bem, então sua cegueira se torna culpada (Cf. Jo 9,
39- 41).
Comecemos por nós
mesmos, cada um procurando mudar o próprio coração e depois poderemos pedir
mudanças aos outros. O modelo é o mestre Jesus: “Por que me chamais
“Senhor, Senhor” e não fazeis o que eu digo?”. E aí fica claro que cumprir sua
palavra é construir sua casa (tanto a casa interior: o mais
profundo da gente mesmo, como social, a comunidade nova) sobre a rocha que é a
Palavra de Deus.
Na maioria das tradições espirituais, a espiritualidade
é a busca da veracidade interior e a luta permanente para evoluir a partir da
nossa realidade pessoal, seja ela qual for. Atualmente, esse é o desafio da
educação, é o desafio na atividade política, é o desafio nas Igrejas e
religiões. O evangelho de hoje contém a boa notícia de que é sempre possível
retomarmos o caminho da unificação interior e da busca de maior coerência. No
mundo inteiro, a Igreja Católica se depara com escândalos nos meios clericais:
escândalos morais como a pedofilia praticada por ministros, na maioria das
vezes, extremamente arrogantes, homofóbicos e severos com os pecados dos
outros. Também com escândalos econômicos que atingem o próprio Vaticano. E se
levantássemos o escândalo da desumanidade que ainda vigora em certas formas de
tratar os outros nos conventos e nos ambientes do clero? Para Jesus, um dos
maiores escândalos era o fato dos seus discípulos competirem entre si por poder
e prestígio. Se a boa notícia do evangelho de hoje é que podemos sempre retomar
o caminho da conversão evangélica, o chamado é para que aproveitemos a Quaresma
e a preparação para a Páscoa que começaremos nesta próxima quarta-feira, como
tempo de reeducação de nós mesmos para vivermos o que Jesus nos propõe.
Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
[1] - M. ECKHART, Meister Eckhart: Sermons and Treatises, 3 vol. coordenados por
MAURICE WALSHE, Element Books, Shaftesbury, 1979, sermão 46, pp. 20.
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