Marcelo Mário de Melo
Em 1964 havia no Colégio
Estadual de Pernambuco – CEP, antigo Ginásio Pernambucano, hoje novamente com o
velho nome, no Recife, uma base do Partido Comunista Brasileiro com 25 jovens
militantes, homens e algumas mulheres. A ação política se desdobrava nas reivindicações
locais, nas campanhas pelo diretório estudantil e nas disputas com a direita em
torno das entidades municipal e estadual dos secundaristas: a Associação
Recifense dos Estudantes Secundários – ARES e o CESP – Centro dos Estudantes
Secundaristas de Pernambuco.
Os estudantes também eram
convocados a atuar nas campanhas eleitorais e em mobilizações vinculadas às
bandeiras políticas da época. Defendíamos as reformas de base, entre elas a
reforma agrária, a reforma urbana, a reforma do ensino. Éramos pelo direito de
voto para os analfabetos e soldados e cabos das forças armadas.
Combatíamos o
colonialismo e as ditaduras no mundo, com destaque para a libertação das
colônias africanas, as ditaduras de Salazar em Portugal, Franco na Espanha e
Strossner no Paraguai. Defendíamos ardorosamente a jovem revolução cubana e,
muitas vezes, participávamos de atos públicos, panfletagens e pichações em
defesa de Cuba, contra as ameaças e as tentativas de invasão comandadas pelo
imperialismo norte-americano, então sob a batuta do bonitão John Kennedy.
Na base do CEP havia um
grupo de companheiros que participava do Clube Literário Monteiro Lobato, o
famoso CLML, que ativava um concurso permanente de crônicas, tinha reuniões
sistemáticas, possuía centenas de filiados de diversos colégios e chegou a
publicar alguns números do jornal Juvenília, inviabilizado a partir do golpe de
abril de 1964.
O CLML tinha uma grande
força atrativa entre os secundaristas mais novos. Os seus integrantes
comunistas formavam um grupo com identidade própria, inclusive, com uma
organização de base específica, vinculada ao Comitê Secundarista. Jonas fazia
parte desse grupo, juntamente com David Capistrano Filho, Francisco de Assis
Barreto da Rocha, Amaro Quintino, Dmitri, Rogério Jansen e outros companheiros.
Eu não tinha muita
aproximação com Jonas. Convivia com ele nas reuniões e o encontrava
constantemente nas agitações de rua e em eventos políticos. Via-o muito ao lado
de Davizinho, outras vezes com Davizinho e Rosa Barros, que participava da base
do Colégio Estadual do Recife, de alunado feminino, e, como ele, morava no
bairro de Santo Amaro. Tinha maior aproximação com o seu irmão mais velho,
Carlos Augusto, que participava da base do CEP e chegou a disputar a
presidência do diretório.
No dia 1º de abril de
1964, no meio da tarde, saímos em passeata da Escola de Engenharia, na Rua do
Hospício, em direção ao Palácio das Princesas, cercado por tropas verde-oliva,
para defender o governo de Miguel Arraes. Quando estávamos na altura da
Pracinha do Diário, no cruzamento com a Av. Dantas Barreto, em marcha passo de
ganso, avançou contra nós um pelotão vindo das imediações do Palácio da
Justiça, que começou a disparar, inicialmente, para cima. Depois foi baixando o
ângulo até o nível dos manifestantes.
Alguns companheiros
gritaram: "é festim"! Mas eu vi os pedaços de reboco caindo do alto
de um edifício, sob o efeito das balas, e dei o grito de alarme: "não é
festim, não! É bala!” Entre correrias e tiros, avistei o companheiro Oswaldo Coelho,
que me havia recrutado para a base do CEP e agora estudava Direito, carregando
um corpo masculino com um grande buraco se estendendo pelo pescoço, o queixo
arrancado a tiros. Somente depois, voltando para casa, soube que o ferido era
Jonas.
Junto a Jonas também
tombou o jovem Ivan Aguiar, comunista de nascença, filho de Severino Aguiar,
que morreu na década de 90 com mais de noventa anos, ostentando o orgulho de
ser o mais antigo comunista vivo do Brasil. Ivan havia sido aprovado no
vestibular para engenharia e aguardava o momento de começar a fazer o curso. Já
ferido, ele ainda conseguiu disparar um tiro de um revólver 38 que Antônio
Florêncio, comunista de Palmares, recolheu e guardava como relíquia.
A Ivan, um brinde pela
iniciativa desse - lamentavelmente único
- tiro dado em Pernambuco em defesa da
democracia e contra os golpistas de 1964. Diz-se que, ao lado de Ivan e Jonas,
também tombaram um homem desconhecido e uma funcionária da loja de produtos masculinos
- Remilet - colhida por um tiro no seu local de trabalho, na Av. Dantas
Barreto.
Aos 16 anos, depois de
passar por três meses de prisão, quando perguntado, num inquérito, o que achava
da "Revolução de 31 de Março de 1964", Davizinho Capistrano respondeu que não poderia achar nada de bom,
porque o seu pai estava sendo perseguido, ele fora preso e o seu melhor amigo
havia sido morto. Em cartas a mim, na década de 1960, David se refere a
momentos de profundo sofrimento pela perda de Jonas, denominando-os de
"jonismo".
Vim saber mais de Jonas
depois da sua morte. Li poemas seus. Apreendi a dimensão da sua amizade
grudenta com Davizinho e Rosa, formando um trio inseparável. Um dia, em 1964,
acompanhei numa homenagem a Jonas o poeta Albérgio Maia de Farias, também
companheiro do PCB e das lutas estudantis. Na Galeria de Arte, da qual Jonas
era freqüentador, suspensa na margem do Rio Capibaribe, em frente aos Correios,
destruída na cheia de 1965, ele deixou fixado no mural um poema que começava
assim: "Na Galeria de Arte/há um banco de saudade/e há gestos de
futuro/quebrando a serenidade".
Jonas e Ivan Aguiar
tiveram suas vidas interrompidas na juventude. Passaram à condição de
referências simbólicas dos jovens que lutaram pela democracia e contra a
implantação da ditadura de 1964. Transformaram-se em bandeiras de idealismo e
resistência, tremulando em nossos corações e apontando para a coerência dos
nossos passos.
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