Frei Betto
Entramos
na Semana Santa, quando se comemora a prisão, morte e ressurreição de Jesus,
episódios centrais para a fé de todos nós, cristãos. Para quem tem fé, Jesus é
o Salvador, o Filho de Deus presente entre nós. Para o historiador, um profeta
apocalíptico que percorreu a Palestina na primeira metade do século
I, defendeu os direitos dos pobres, criticou a ocupação do Império Romano,
denunciou a religião opressiva do Templo de Jerusalém e morreu na cruz.
Desde o
século XVIII se intensificou o debate sobre o Jesus histórico. O filósofo
alemão Hermann Reimarus inaugurou os estudos não confessionais sobre
a vida de Jesus. Bauer, Couchoud, Drews e, mais tarde, os
partidos comunistas, defenderam que ele jamais existiu. Tal conclusão foi
desprezada pela quase totalidade da crítica, e Bultmann disse que nem valia a
pena discutir o assunto. Há mais evidências da existência de Jesus do que a de
Sócrates e, no entanto, não se coloca em dúvida o que Platão nos transmitiu a
respeito do famoso filósofo.
Do ponto
de vista histórico, não há muitas certezas a respeito de Jesus, exceto o que
nos informam o Novo Testamento, em especial os quatro evangelhos, e alguns
autores judeus e romanos, como Flávio Josefo. E ainda hoje perdura uma
interrogação: quem foi o responsável por sua morte? Infelizmente, a primeira
resposta da Igreja foi culpar os judeus. Preconceito infundado que favoreceu o
antissemitismo. E, ainda hoje, malha-se Judas – cujo nome é associado ao
judaísmo – no sábado de Aleluia.
A leitura
crítica do Novo Testamento nasceu na Alemanha, se estendeu
pela França, com Renan,
Loisy, Goguel e Guignebert e, em seguida, para o Reino
Unido e os Estados Unidos, onde, ainda hoje, a discussão é calorosa. Os
judeus também participaram com Klausner e Montefiore.
Três
teses se destacam como principais. A primeira, que os verdadeiros culpados
foram os judeus. A segunda, que foram os romanos. A terceira, que a culpa foi
de ambos: o Sinédrio – a suprema corte religiosa e política do judaísmo no
século I -, como denunciante e acusador, e o interventor romano, o
governador Pôncio Pilatos, como juiz e executor.
Ora, hoje
em dia a Igreja admite que os Evangelhos não são livros de história, nem
registros judiciais. Por isso, é inútil pretender encontrar neles um relato
preciso do julgamento de Jesus. Na verdade, os sinóticos (Mateus, Marcos e
Lucas) se contradizem em vários pontos, como nos relatos dos dois ladrões
crucificados ao lado de Jesus, do sonho da mulher de Pilatos e da interferência
de Herodes Antipas, governador da Galileia.
Contudo, Mateus, Marcos e Lucas concordam em um ponto:
Jesus foi preso à noite por uma turba de judeus, que o levou imediatamente para
o Sinédrio. Para Lucas, o prisioneiro foi conduzido à casa de Caifás, o
Sumo Sacerdote. João acrescenta em seu evangelho que, em apoio aos
guardas do Templo, havia uma guarnição romana. Ou seja, os romanos participaram
da captura, já que sobre o Nazareno pesava a suspeita de sedição. Afinal,
dentro do reino de César ele ousara anunciar outro reino possível – o de Deus,
baseado em novas relações pessoais e sociais - o amor e a partilha dos
bens.
Naquela
madrugada, o prisioneiro político compareceu à presença de Pilatos para ser
julgado. Isso significa que o governador romano já tinha sido avisado e estava
decidido a processá-lo.
Tais
circunstâncias induziram muitos autores a concluir que a denúncia teria partido
das autoridades judaicas, alarmadas com a atividade do pregador itinerante, que
já se tornara conhecido ao expulsar os vendilhões do Templo.
Pela
ótica do Sinédrio, pesava sobre Jesus a acusação de blasfêmia, já que ousara se
autoproclamar Messias. Pela ótica dos romanos, de crime de lesa-majestade, já
que teria se arvorado em rei dos judeus. Enquanto a primeira acusação pouco
importava aos judeus, a segunda merecia a pena de morte na cruz. Embora os
evangelhos tendam a ressaltar a culpa dos sacerdotes e até mesmo dos judeus, e
atenuar o papel de Pilatos, a sentença final foi proferida pelo
interventor imperial.
No século
passado, o Concílio Vaticano II, após longa discussão, aboliu a
infâmia de acusar o povo judeu de deicídio. O que diz, entretanto,
o julgamento da história? Ora, saber algo de preciso sobre o Jesus
histórico é quase impossível, como salientou, há um século, o renomado médico e
teólogo Albert Schweitzer, que tudo abandonou na Alemanha para cuidar, na
África, de pacientes muito pobres.
As
certezas que temos sobre o Jesus histórico são muito poucas. E pelo
que sabemos de sua morte só se pode concluir, com o historiador das religiões,
o francês Charles Guignebert, que o Nazareno foi submetido a um julgamento
romano, por uma acusação romana, condenado por um juiz romano a uma pena
exclusivamente romana, e afixada sobre sua cabeça uma sentença romana ofensiva
aos judeus: Iesus Nazarenus Rex Iudeorum (Jesus Nazareno, rei
dos judeus). Assim, do ponto de vista puramente histórico a culpa do
assassinato de Jesus foi romana.
Hoje,
Jesus continua virtualmente assassinado por todos aqueles que usam em vão o seu
nome para legitimar fake news, opressões, governos tirânicos e
desigualdades sociais.
Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado
Jesus” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
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