Maria Clara Bingemer
No
momento em que parecia que a humanidade iria emergir do pesadelo da Covid-19, o
anúncio da guerra na Ucrânia caiu como uma bomba. Não há outro assunto na
mídia, levantando posições diversas sobre um e outro lado desta guerra. E
o que se apresenta aos olhos de todos nós é o saldo de sempre: sangue,
destruição, sofrimento, vítimas e mais vítimas, sobretudo crianças e
pessoas vulneráveis das vulnerabilidades tantas que compõem o cenário da vida
humana neste já avançado século XXI.
Discute-se se a guerra é justa ou não; quem tem razão e quem não tem; quais
implicações tem esta ou aquela tomada de posição; que organismos internacionais
devem ou não intervir.
É sempre bom ouvir o que dizem sábios e justos de outras épocas que
viveram situações semelhantes. Aqui trazemos a reflexão da filósofa
Simone Weil, que viveu no século XX. Nascida em 1909, viveu a Primeira Guerra
mundial, lutou na Guerra Civil Espanhola e morreu durante a Segunda Guerra
mundial, em 1943, aos 34 anos.
Para Simone Weil, na sociedade como no mundo a ordem resulta do jogo das
forças e energias que se limitam e se equilibram. Isso para ela é a
imagem da pureza, o equilíbrio entre a força da gravidade e a energia da
luz. Não é possível, portanto, haver relações justas entre os seres
humanos senão na medida em que uns e outros sabem limitar seus desejos e não
desejam se apropriar dos objetos finitos. Pois um desejo limitado pode
compor com os outros desejos que a pessoa porventura tenha e com os desejos
limitados das outras pessoas.
A violência surge precisamente quando o homem começa a desejar o
ilimitado, ou seja, perde o freio de seus próprios desejos e/ou quando seu
desejo se encontra contrariado pelos outros. Enraíza-se, então, em um
desejo ilimitado que esbarra no limite constituído pelo desejo de um outro.
Para Simone Weil, a justiça e a paz só podem acontecer no momento em que os
seres humanos renunciam a possuir o infinito, renunciam a desejar
ilimitadamente. Se não conseguem fazer isso, é preciso que a lei os
constranja a isso. A lei será o limite nas questões sociais e de luta
pela justiça.
A injustiça resultaria do desequilíbrio das forças, sendo os mais fracos
oprimidos pelos mais fortes. Agir pela justiça é restabelecer o
equilíbrio das forças. Mas isso só é possível quando uma força impõe um
limite à força que introduz o desequilíbrio.
A grande filósofa francesa está longe, portanto, de ser uma
pacifista ingênua. Pelo contrário, é a favor da ação, embora reconheça
que a ação sempre traz em si o peso da força. Mas não ousa estabelecer
uma distinção clara entre a ação violenta e a ação não violenta, como se, para
ela, o agir humano estivesse sempre “sombreado” de violência.
A violência não é somente instrumento de opressão social ou de agressão
militar. É também um método de ação que parece às vezes necessário para
defender a liberdade ameaçada ou para conquistá-la. Ela pode, com efeito,
ser empregada a serviço de causas justas. Mas isso não a torna
justa. Se parece necessária para combater a injustiça, a violência
não permanece menos uma violência que machuca e fere a humanidade, tanto
daquele que a sofre como daquele que a exerce.
Simone Weil lutou contra a violência enquanto pôde ao longo de toda a
sua vida. Lutou com a inteligência luminosa e o extraordinário talento
que possuía para pensar e escrever. Uniu-se a grupos políticos e somou-se
a eles em suas lutas libertárias contra poderes opressores. E soube
afastar-se deles, igualmente, quando estes a decepcionaram e não lhe pareceram
fiéis e transparentes ao ideal que haviam abraçado. Escreveu muito para
defender aquilo em que acreditava. Encheu folhas e folhas de papel nas
situações mais incômodas e pouco propicias à escrita: no exílio, no campo de
refugiados, no barco que a levava em plena guerra juntamente com seus pais para
os Estados Unidos etc. E se preocupou de, antes de partir para o exílio,
entregar seus escritos a pessoas em quem confiava, a fim de que fossem
divulgados e pudessem ajudar outras pessoas.
A vida e o pensamento desta pensadora nos interpelam hoje, quando
presenciamos nações se enfrentando e medindo forças. Na verdade, a força
é, segundo ela, o que determina as relações entre os homens. E não é
possível amar e ser justo senão conhecendo o império da força e sabendo não
respeitá-lo. Que o mundo consiga aprender essa difícil atitude, é o que resta
desejar diante da guerra que se trava neste momento, mobilizando o mundo.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio e autora de "Simone Weil: a força e a fraqueza do amor” (Editora
Rocco), entre outros livros
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