Leonardo Boff
Com a guerra na Ucrânia, movida pela Rússia, com o risco de uma
hecatombe nuclear comprometendo a biosfera e a vida humana, com o predomínio do
egoísmo a nível internacional no enfrentamento do Covid-19 e com ascensão do
nazifascismo com sua onda de ódio e de violência e o pensamento reacionário e
ultraconservador em várias partes do mundo, se está revelando a irracionalidade
da razão moderna.
Perdendo a razão perdemos os critérios que orientam nossas práticas e os
seres humanos demonstram comportamentos ensandecidos. Em momentos assim, temos
que recorrer ao que é mais fundamental na vida humana: o bom senso crítico. O
bom senso, crítico e não ingênuo, sempre foi o grande orientador antecipado de
nossas práticas para que mantenham seu nível humano e minimamente ético.
Que é o bom-senso? Dizemos que alguém mostra bom senso quando para cada
situação tem a palavra certa, o comportamento adequado e quando atina logo com
o cerne da questão. O bom-senso está ligado à sabedoria concreta da vida. É
distinguir o essencial do secundário. É a capacidade de ver e de colocar as
coisas em seu devido lugar.
O bom senso é o oposto ao exagero. Por isso, o louco e o gênio que em
muitos pontos se aproximam, aqui se distinguem fundamentalmente. O gênio é
aquele que radicaliza o bom-senso. O louco, radicaliza o exagero.
Para concretizar o bom senso, tomemos dois exemplos de figuras
arquetípicas: o mais próximo, o Papa Francisco, e o mais originário Jesus de
Nazaré.
O eixo estruturador da retórica do Papa Francisco não são as doutrinas e
os dogmas da Igreja Católica. Não que as preze menos. Sabe que elas são
criações teológicas criadas historicamente. Mas elas provocaram conflitos e até
guerras de religião, cismas, excomunhões, teólogos e mulheres (como Joana D’Arc
e as tidas por “bruxas”) queimados na fogueira da inquisição. Isso durou por
séculos e o autor destas linhas fez uma amarga experiência pessoal no cubículo
onde se interrogavam os acusados no edifício severo e escuro da ex-Inquisição,
à esquerda da basílica de São Pedro de quem o olha de frente.
O Papa Francisco revolucionou o pensamento da Igreja remetendo-se à
prática de extremo bom senso do Jesus histórico. Ele resgatou o que
hodiernamente se chama “a Tradição de Jesus”
que é anterior aos atuais evangelhos, escritos 30-40 anos após a sua execução
na cruz.
A Tradição de Jesus ou também, como nos Atos dos Apóstolos se chama “o caminho de Jesus” se funda mais em valores e
ideais do que em doutrinas. Essenciais para o Papa são o amor incondicional, a
misericórdia, o perdão, a justiça dos oprimidos, a centralidade dos pobres e
marginalizados e a total abertura a Deus-Abbá (Paizinho querido). Estes são os
valores axiais que orientam suas intervenções e os revela concretamente em seus
gestos de bondade, de cuidado, particularmente, para com os imigrados do
Oriente Médio, de África, e agora da Ucrânia bem como as vítimas dos pedófilos
por parte de alguns da própria Igreja.
Voltemo-nos a Jesus de Nazaré. Ele não pretendeu fundar uma nova
religião. Quis nos ensinar a viver. Viver com fraternidade, solidariedade e
cuidado de uns para com os outros e total abertura ao Deus-Abbá. Estes são os
conteúdos de sua mensgem: o Reino de Deus e a misericórdia ilimitada de seu
Deus de infinita bondade.
Como nos testemunham os evangelhos, evidenciou-se como um gênio do
bom-senso. Um frescor sem analogias perpassa tudo o que diz e faz. Deus em sua
bondade, o ser humano com sua fragilidade, a sociedade com suas contradições e
a natureza com seu esplendor comparecem numa imediatez cristalina. Não faz teologia.
Nem apela para princípios morais superiores. Nem se perde numa casuística
tediosa e sem coração como o faziam e fazem os fariseus de ontem e de hoje.
Suas palavras e atitudes mordem em cheio no concreto onde a realidade
sangra e ele, face aos sofredores, consola-los, cura-os e até
ressuscita-os.
Suas admoestações são incisivas e diretas: ”reconcilia-te com teu
irmão”(Mt 5,24). “Não jureis de maneira nenhuma”(Mt 5, 34). “Não resistais aos
maus”(Mt 5, 39) mas”amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”(Mt,5,
34). “Quando deres esmola, que a mão esquerda não saiba o que faz a direita”(Mt
6, 3).
Esse bom-senso tem faltado, não raro, à Igreja institucional (Papas,
bispos e padres), especialmente em questões morais ligadas à sexualidade e à
família. Aqui tem se mostrado severa e implacável. Sacrifica as pessoas em sua
dor aos princípios abstratos. Rege-se antes pelo poder do que pela
misericórdia. E os santos e sábios nos advertem: onde impera o poder, se esvai
o amor e desaparece a misericórdia.
Como é diferente com Jesus e com o Papa Francisco. A qualidade
principal de Deus, nos diz o Mestre e o repete continuamente o Papa,
é a misericórdia. Jesus é contundente: “Sede misericordiosos como vosso
Pai celeste é misericordioso”(Lc 6, 36).
O Papa Francisco explica o sentido etimológico da misericórdia: miseris cor dare”: “dar o coração aos
míseros”, aos que padecem. Numa fala no Angelus de
6 de abril de 2014 diz com voz alterada: ”Escutai bem: não existe limite algum
para a misericórdia divina oferecida a todos”. Pede que a multidão repita com
ele: “Não existe limite algum para a misericórdia divina oferecida a
todos”.
Dá uma de teólogo ao recordar a concepção de São Tomás de Aquino sobre
prática, da misericórdia: é a maior das virtudes “porque cabe-lhe
derramar-se para os outros e mais ainda socorre-los em suas debilidades”.
Cheio de misericórdia, face aos riscos da epidemia da zica abre espaço
para o uso de anticoncepcionais. Trata-se de salvar vidas: “evitar a gravidez
não é um mal absoluto”, disse em sua vista ao México. Durante a pandemia do
Covid-19 fez apelos contínuos à solidariedade e ao cuidado, especialmente às
crinças e aos anciãos. Gritantes foram seus apelos à paz no conflito
bélico da Rússia contra a Ucrânia. Chegou a dizer: “Senhor detenha o braço de
Caim. Uma vez detido, cuide dele, pois é nosso irmão”.
Aos novos cardeais diz com todas as palavras: “A Igreja não condena para
sempre. O castigo é para esse tempo”. Deus é um mistério de inclusão e de
comunhão, jamais de exclusão. A misericórdia é sempre triunfante. Jamais pode
perder um filho ou filha que criou com amor (cf. Sab 11,21-24).
Lógico, não se entra de qualquer jeito no Reino da Trindade. Passar-se-á
pela clínica purificadora de Deus até as pessoas saírem purificadas.
Tal mensagem é verdadeiramente libertadora. Ela confirma sua
exortação apostólica “A alegria do Evangelho”. Tal
alegria é oferecida a todos, também aos não cristãos, porque é uma caminho de
humanização e de libertação.
Eis o triunfo do bom senso que tanto nos falta neste momento dramático
de nossa história, cujo destino está em nossas mãos. O Papa Francisco e Jesus
de Nazaré comparecem como inspiradores de bom senso, de misericórdia e de uma
radical humanidade. Tais atitudes nos poderão salvar.
Leonardo Boff é teólogo e
escreveu Habitar a Terra: qual o caminho para a fraternidade
universal? Vozes 2021; Nostalgia de Deus: a força dos
humildes, Vozes 2020.
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