Tempos atrás
publiquei no meu blog (facebook e twitter) um artigo com o título “O peso kármico da história do Brasil”. Hoje vejo a
necessidade de retomar o tema pois a situação nacional, num cenário eleitoral,
se obscureceu e ganhou contornos perturbadores, seja de ruptura constitucional,
seja de grave e violenta convulsão social.Quando o atual e sinistro presidente
afirma, publicamente, que só reconhecerá um resultado eleitoral, vale dizer, a
sua reeleição, caso contrário, questionaria as urnas eletrônicas ou convocaria
seus seguidores armados, provavelmente, os milicianos e então ocorreria grave
perturbação.
Ele é tão
pouco político e desvairado que nem esconde o jogo. Revela-o às claras.Tal
comportamento de um chefe de estado que se caracteriza por constantes ameaças
às instituições e pelo permanente descaso da situação dramática do país, em
especial, dos mais de 660 mil vítimas do Covid-19, dos milhões de famintos, dos
de insuficiência alimentar, dos desempregados nos provoca graves preocupações e
sérias apreensões.
As razões da irrupção da sombra bolosonarista
Precisamos
tentar entender o porquê irrompeu esta onda de ódio,de mentiras como método de
governo, de fake news, de calúnias e de corrupção governamental, impedida de
ser investigada. Vieram-me à mente duas categorias: uma da psicanálise
junguiana, a da sombra e outra da grande
tradição oriental do budismo e afins e entre nós, do espiritismo, o karma.
A
categoria de sombra, presente em cada pessoa ou
coletividade, é constituída por aqueles elementos negativos que nos custa
aceitar, que procuramos esquecer ou mesmo recalcar, enviando-os ao
inconsciente seja pessoal seja coletivo.
Cinco sombras na história do
Brasil
Efetivamente,
cinco grandes sombras marcam a história
político-social de nosso país: o genocídio indígena, persistente até hoje; o
colonização que nos impediu que ter um projeto próprio, de um povo livre; o
escravagismo, uma de nossas vergonhas nacionais, pois, implicava tratar o
escravo como coisa, ”peça”, posta no mercado para ser comprada e vendida e
submetida constantemente à chibata e ao desprezo; a permanência da conciliação
entre si, dos representantes das classes dominantes, seja herdeiras da Casa
Grande ou do industrialismo especialmente a partir de São Paulo. Estes nunca
pensaram num projeto nacional que incluísse o povo, projeto somente deles para
eles, capazes de controlar o estado, ocupar seus aparelhos e ganhar fortunas
nos projetos estatais. Por esta razão emerge uma quinta sombra a democracia de baixa intensidade que perdura
até hoje e atualmente mostra grande debilidade. Medida pelo respeito à
constituição, aos direitos humanos pessoais e sociais e pelo nível de
participação popular comparece antes como uma farsa do que, realmente, uma
democracia consolidada.
Sempre
que algum líder político com ideias reformistas, vindo do andar de baixo, da senzala
social, apresenta um projeto mais amplo que abrange o povo com políticas
sociais inclusivas, estas forças de conciliação, com seu braço ideológico, os
grandes meios de comunicação, como jornais, rádios e canais de televisão,
associados a parlamentares e a setores importantes do judiciário, usaram o
recurso do golpe seja militar (1964), seja jurídico-político-mediático (1968)
para garantir seus privilégios. Difamam, perseguem e até, sem base jurídica,
colocam na prisão as lideranças populares. O desprezo e o ódio, outrora
dirigidos aos escravos, foi transferido covardemente aos pobres e miseráveis,
condenados a viver sempre na exclusão. É o método denunciado pelo
eminente sociólogo Jessé Souza em seu clássico A elite do atraso (2017).Esta
sombra paira sobre a atmosfera social de nosso país. É sempre ideologicamente
escondida, negada e recalcada.
A visibilidade da sombra bolsonarista
Com o
atual inominável como presidente e com o séquito de seus seguidores, o que era
oculto e recalcado saiu do armário. Sempre estava lá, recolhido mas atuante,
impedindo que nossa sociedade, dominada pela elite do atraso, fizesse as
transformações necessárias e continuasse com uma característica conservadora e,
em alguns campos, como nos costumes, até reacionária.
As cinco
sombras referidas acima se tornaram visíveis no bolsonarismo e em seu “cappo”:
a magnificação da violência até da tortura, o racismo cultural, a homofobia, os
de outra opção sexual, o desprezo ao afrodescendente, ao indígena, à
mulher e ao pobre. É de estranhar que muitos, até pessoas sensatas, possam
seguir uma figura tão boçal, deseducada e sem qualquer empatia pelos sofredores
deste nosso país e do mundo.
Essa é
uma explicação, certamente, não exaustiva, através da sombra que sub-jaz às várias crises que atravessam toda
a sociedade.
A outra
categoria é a do karma.Para conferir-lhe algum grau
analítico e não apenas metafísico (o destino humano) valho-me de um longo
diálogo entre o grande historiador inglês Arnold Toynbee e Daisaku Ikeda,
eminente filósofo japonês, recolhido no livro. Elige la
vida ( Emecé. Buenos Aires 2005).
O karma é um termo sânscrito originalmente
significando força e movimento, concentrado na
palavra “ação” que provocava sua correspondente “re-ação”. Aplica-se aos
indivíduos e também às coletividades.
Cada
pessoa é marcada pelas ações que praticou em vida. Essa ação não se restringe à
pessoa mas conota todo o ambiente. Trata-se de uma espécie de conta-corrente
ética cujo saldo está em constante mutação consoante as ações boas ou más que
são feitas, vale dizer, os “débitos e os créditos”. Mesmo depois da morte, a
pessoa, na crença budista, carrega esta conta; por isso se reencarna para que,
por vários renascimentos, possa zerar a conta negativa.
Para
Toynbee não se precisa recorrer à hipótese dos muitos renascimentos porque a
rede de vínculos garante a continuidade do destino de um povo (p.384). As
realidades kármicas impregnam as instituições, as paisagens, configuram as
pessoas e marcam o estilo singular de um povo. Esta força kármica atua na
história, marcando os fatos benéficos ou maléficos, coisa já vista por C.G.Jung
em suas análises psico-sócio-históricas.
Toynbee
em sua grande obra em dez volumes “Um Estudo da História”(A Study of History) trabalha a chave
Desafio-Resposta (Challange – Response) e vê sentido
na categoria do karma. Mas dá-lhe outra versão
que me parece esclarecedora e nos ajuda entender um pouco as sombras nacionais
e a sombra bolsonarista.
A
história é feita de redes relacionais dentro das quais está inserida cada
pessoa, ligada com as que a precederam e com as presentes. Há um funcionamento
kármico na história de um povo e de suas instituições consoante os níveis de
bondade e justiça ou de maldade e injustiça que produziram ao largo do tempo.
Este seria uma espécie de campo mórfico que permaneceria impregnando tudo.
A arrogância europeia e a bolsonarista
Vejamos o
exemplo da cultura europeia ocidental. Ele criou a modernidade e projetou o
ideal do ser humano como dominus, senhor de
tudo, dos povos, dos continentes, da Terra, da vida e até os últimos elementos
da matéria. Impôs-se globalmente a ferro e fogo e gerou as principais guerras,
especialmente, as duas mundiais e atualmente, através da NATO, apoiando a
guerra na Ucrânia.
No dizer
do grande e discutido analista Samuel P.Huntington em seu conhecido livro Choque de civilizações (1997):”A intervenção ocidental
nos assuntos de outras civilizações provavelmente constitui a mais perigosa fonte de instabilidade e de
um possível conflito global num mundo
multi-civilizacional”(p.397). É a famosa arrogância ocidental de possuir a
melhor religião (cristianismo), a melhor ciência e tecnologia, a melhor
sociedade, a melhor democracia, a melhor cultura, tudo melhor etc. Respeitadas
as diferenças semelhante juízo se aplica também à arrogância
bolsonarista,do presidente e de muitos de seus ministros.
Tanto
Toynbee quanto Ikeda concordam nisso:”a sociedade moderna (nós incluídos) só
pode ser curada de sua carga kármica, acrescentaríamos, de sua sombra, através
de uma revolução espiritual no coração e na mente (p.159), na linha da justiça
compensatória e de políticas sanadoras com instituições justas.
Como desfazer as sombras e o karma negativo
Entretanto,
elas sozinhas não são suficientes e não desfarão as sombras e o
kama negativo. Faz-se mister o amor, a solidariedade, a compaixão e
uma profunda humanidade para com as vítimas. O amor será o motor mais eficaz
porque ele, no fundo, afirmam Toynbee e Ikeda “é a Última Realidade”(p.387).
Uma
sociedade, perpassada pelo ódio e pela mentira como no bolsonarismo e incapaz
de efetivamente amar e de ser menos malvada, jamais desconstruirá uma história
tão marcada pelas sombras e pelo karma negativo como a nossa. Isso vale
especificamente pelos modos rudes, ofensivos e mentirosos do atual presidente
do Brasil.
Não
apregoam outra coisa os mestres da humanidade, como Jesus, São Francisco de
Assis, Dalai Lama, Gandhi, Luther King Jr e o Papa Francisco? Só a dimensão de
luz e o karma do bem livram e redimem a sociedade da força das sombras
tenebrosas e das kármicas do mal.
Se não
derrotarmos eleitoralmente o inominável atual presidente, o país se moverá de
crise em crise, criando uma corrente de sombras e karmas destrutivos,
comprometendo seu próprio futuro. Mas a luz e a energia do positivo sempre se
mostraram historicamente mais poderosas que as sombras e o karma
negativo.Estamos seguros de que serão elas que escreverão a página
definitiva da história de um povo.
Leonardo
Boff é teólogo e filósofo e escreveu Brasil:concluir a refundação ou
prolongar a dependência, Vozes 2018.
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