Maria Clara Bingemer
É parte constitutiva da identidade do
ser humano o elemento da festa. A festa interrompe o tempo cotidiano e
introduz a diferença do ritual e da celebração, para marcar uma ocasião
especial em que é preciso deixar a rotina e voltar os olhos para o
extraordinário que irrompe no tempo cronológico.
Todas as festas são eventos
pelos quais se entra em “outra” ordem de coisas, onde a fantasia, a imaginação
e o desejo tomam lugar. Festejar, portanto, é reafirmar nossa condição de
ser humano, é sublinhar o fato de que não somos guiados apenas pelos instintos
e pelo kronos que implacavelmente passa. Festejar é
demonstrar que temos algum poder sobre o tempo, transfigurando-o com o rito da
comemoração e da celebração.
Em tempo de carnaval, mesmo fora de
época como no feriado de 21 de abril, as reflexões acima se aplicariam. Somos
instigados a refletir sobre o sentido e o objetivo da música e da dança,
dos espetáculos cheios de luzes e cores, dos corpos desnudados e fantasiados em
desfile, do samba na rua, de tudo que compõe os três dias que o povo espera com
sofreguidão. Isso torna-se ainda mais importante no Brasil, país onde o
carnaval ocupa lugar central no imaginário do povo. Chamado com justeza país do
Carnaval, o Brasil parece que entra em câmara lenta no Ano Novo para só
recuperar seu ritmo e dinamismo depois dos festejos momescos. E agora, com este
carnaval adiado devido à pandemia, impressiona a adesão de muitíssimos foliões
saudosos da festa que não puderam celebrar nos dois últimos anos.
Efetivamente, a maioria daqueles e
daquelas que “brincam” o Carnaval conhecem pouco ou nada do seu sentido mais
profundo. A primeira dimensão dos folguedos carnavalescos tem a ver com um
tempo religioso, cósmico e sagrado, onde a Transcendência é que irrompe e
transfigura o kronos. O antropólogo Roberto da Matta nos
chama a atenção, em seu conhecido livro “Carnavais, malandros e
heróis”, para o fato de o carnaval ficar suspenso entre o Advento
(tempo ligado ao nascimento de Cristo que é celebrado no Natal) e os 40 dias da
Quaresma, esse período de penitência e mortificação que visa à conversão (metanoia) e
culmina com a celebração dos mistérios da paixão, morte e
ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.
De fato, é como se todo o ritual
carnavalesco, tão apaixonadamente preparado e vivido pelo povo e que tantos
milhões rende aos bolsos dos donos das festas e desfiles só deixasse brilhar
seu verdadeiro sentido quando o silêncio da Quarta-feira de Cinzas se faz, com
seu ritual das cinzas aplicadas em cruz sobre a testa dos penitentes
acompanhado das palavras: Convertei-vos e crede no Evangelho. A
quarta-feira proclama a morte de Cristo, agora assumida pela disciplina da
Quaresma, que substitui os folguedos e a descontração carnavalesca.
O carnaval, portanto, não tem rosto
próprio, já que sua identidade é dada por um outro tempo e uma outra ordem de
coisas e de sentido. Figura – ainda seguindo Roberto da Matta - como um
momento sem nome ou vez, escondido nas dobras de um calendário sagrado. Situado
entre o nascimento e a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, a
festa que é o reinado de Momo é efêmera como as alegrias e gozos imediatos.
Assume e resume simbolicamente os momentos crísticos do Natal e da Páscoa. E a
numerologia cristã dos três dias de que fala o Novo Testamento.
O carnaval é, portanto,
um evento relativo. Com o brilho e o ruído que atraem todos os
focos de atenção, na verdade está simplesmente resumindo algo de fulgor bem
maior e duradouro: os três dias de folia se referem e encontram significação no
mistério cristão, já que a festa carnavalesca nasce, agoniza e
morre em três dias.
Sendo um evento sincrônico, repetitivo, prenhe de conteúdos cognitivos e
afetivos, o Carnaval tornou-se e passou a ser um tempo social importante,
fortemente ligado à experiência vital de uma sociedade, muito especialmente da
sociedade brasileira.
Em uma leitura informada pela fé, mas aos olhos das Ciências Sociais, o
Carnaval só pode ser compreendido no contexto da visão cristã de mundo.
Carnaval e Quaresma – no calendário cristão que rege o mundo após a queda do
Império Romano - opõem-se no ciclo anual por seus conteúdos sociais e religiosos,
implicando comportamentos individuais e coletivos opostos. Porém, na verdade,
encontram seu ponto luminoso e iluminador na pessoa de Jesus Cristo, Sol que
nunca se apaga, Vivente por excelência, sobre quem a efemeridade das coisas não
tem e poder.
A alegria do povo que vai às ruas fazer festa é bendita. É cura para as
dores e catarse para as opressões vividas e padecidas. Assim foi esse
carnaval extemporâneo, acontecido depois da Páscoa, mas onde se expressou uma
alegria pascal após tanto luto e tanta morte, como as que assolaram o
povo brasileiro nos últimos dois anos. Essa demonstração de alegria encontra
seu paradigma no mistério que configura o cristianismo e sua esperança no amor
que é mais forte que a morte.
Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de teologia da
PUC-Rio e autora de “Viver como crentes no mundo em mudança” (Editora
Paulinas), entre outros livros.
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Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com
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