Frei Betto
Meu pai lutou contra
a ditadura de Vargas. Esteve preso e assinou o “Manifesto dos Mineiros”,
estopim político que detonou o regime de terror implantado pelo caudilho.
Meu pai, em 1945,
acreditou que nunca mais o Brasil seria governado por outra ditadura. A
democracia havia recuperado fôlego.
Em 1962, troquei
Belo Horizonte pelo Rio, disposto a me dedicar à política estudantil em âmbito
nacional. Jânio Quadros havia sido eleito presidente da República em 1961 e
renunciado oito meses depois. Houve breve período de instabilidade política. A
Constituição, entretanto, prevaleceu, e João Goulart, vice de Jânio, tomou
posse.
Como candidato,
Jânio visitou Cuba em março de 1960 e, poucos dias antes de renunciar,
condecorou Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a
principal comenda da República. Para os setores conservadores, era mais um
sinal de que o país se deslocava da órbita dos EUA para a comunista. De fato,
não eram os países socialistas que atraíam o governo de Jango. Era a coalizão
dos Não Alinhados que congregava 115 países decididos a ficarem distantes das
grandes potências.
Tal independência,
contudo, foi encarada pela Casa Branca como alinhamento ao comunismo. Na
polarização da Guerra Fria entre EUA e a União Soviética, Tio Sam não admitia
neutralidade.
Na política interna,
Jango apregoava o óbvio: promover reformas de base, como a agrária, tão
necessárias ao Brasil ainda hoje. Movimentos sociais, como as Ligas Camponesas,
davam respaldo às intenções do governo.
Diante das
mobilizações de apoio à política reformista de Jango, a direita brasileira,
monitorada pela CIA, como hoje comprovam documentos oficiais, desencadeou
articulações para impedir que as estruturas anacrônicas do país, tão convenientes
aos interesses dos EUA e à elite agroindustrial, fossem alteradas. O fantasma
do comunismo ocupou as manchetes da mídia. Entidades foram fundadas para
aglutinar as forças de direita, como o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação
Democrática). Havia cheiro de golpe no ar...
As forças
progressistas, no entanto, não tiveram suficiente olfato para captá-lo.
Acreditavam que as mobilizações populares, comandadas pela UNE (União Nacional
dos Estudantes), a CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) e os partidos
progressistas e grupos de esquerda (PC, PCdoB, Ação Popular etc.) haveriam de
conter qualquer aventura golpista.
Líderes da esquerda
garantiam que Jango estava firmemente respaldado por um fiel “esquema militar”.
Tinha em mãos o controle da situação. Embora as ruas do país fossem ocupadas
pelas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, encabeçadas por um sacerdote
estadunidense remetido pela CIA ao Brasil, a democracia não sofria ameaça. Oito
anos de ditadura de Vargas (1937-1945) haviam imunizado o país do vírus
golpista.
O dilúvio desabou em
1º de abril de 1964. Sem disparar um único tiro, as Forças Armadas derrubaram o
governo constitucionalmente eleito, rasgaram a Constituição e disseminaram o
regime de terror que cassou políticos e lideranças sociais, prendeu, torturou,
assassinou, fez desaparecer e/ou baniu do país militantes de movimentos
populares, pastorais, sindicais e políticos. O regime de trevas durou 21 anos!
Hoje, o Brasil é
governado por um cúmplice das milícias que ostensiva e repetidamente ameaça a
democracia e promete sabotar as eleições presidenciais de outubro caso as urnas
não lhe deem vitória. E, de novo, vozes se levantam em defesa da democracia e
asseguram que ela está sólida. São vozes do Judiciário, do Legislativo, da
grande mídia, e até de quem admite ter dado, em 2018, seu voto ao neofascista
que ocupa o Planalto.
Enquanto Carolina,
com seus olhos fundos, vê a banda passar e guarda tanta dor, a defesa da
democracia se sustenta, até agora, em mera retórica. “Eu já lhe expliquei que
não vai dar / seu pranto não vai nada ajudar”, pois não há mobilizações
populares. Não há ações efetivas do Judiciário, do Legislativo e dos movimentos
sociais para acuar o presidente nos demarcados limites da Constituição. O tempo
passa na janela e só Carolina não vê. Ninguém sabe o que pensam as Forças
Armadas, exceto que não se queixam do “cala boca” de tantas mordomias
asseguradas pelo capitão, que lhes abriu o cofre, encastelou milhares de
militares nas estruturas de governo e convoca, altissonante, a população a se
armar e desconfiar do processo eleitoral.
Carolina vai
continuar na janela e fazer de conta que não vê? Quem garante, hoje, que Lula
será eleito e, se eleito, tomará posse?
Frágil não é a democracia
brasileira, e sim a nossa capacidade de, como povo, transformar a nossa
indignação em mobilização.
Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte –
leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros. Livraria
virtual: freibetto.org
Frei Betto é autor de 70 livros, editados no Brasil
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