Por LEONARDO BOFF

Sabemos que a figura do dragão é um tema
recorrente em várias culturas, com significados até opostos. Assim no
Ocidente é negativo: representa o mal e o mundo ameaçador ds sombras. No
Oriente é positivo: é símbolo nacional da China, senhor das águas e da
fertilidade. Entre os astecas era a serpente alada (Quezalcoatl), expressão de
sua identidade cultural. Não raro os pobres entre nós dizem: “para me manter,
tenho que matar um dragão por dia”, pois assim o exige a dureza da vida.
Muitos antropólogos e psicólogos que
trabalham sobre o tema dos arquétipos, como Carlos Gustavo Jung, afirmam que o
dragão representa uma das figuras transcultuais mais ancestrais da história
humana. É a percepção de que a nossa identidade profunda, o nosso eu, não nos é
dado simplesmente pelo fato de sermos humanos. Ele tem que ser conquistado numa
luta diuturna, marcada por ameaças e lutas.
Esta situação é representada pelo dragão,
nosso inimigo principal. Ele quer devorar o eu ou impedir que se liberte e faça
o seu caminho de autonomia e de liberdade. Só assim seríamos plenamente
humanos.
Por isso, junto com o dragão sempre vem o cavaleiro São Jorge que com ele se
confronta numa luta renhida. Qual é o significado do dragão e de São Jorge? À
luz dos estudiosos referidos acima, tanto um como o outro são partes de nossa
realidade humana. Cada um de nós carrega um dragão e um São Jorge dentro de si.
Isso é assim porque a nossa vida é sempre feita de luz e de sombras, do
dia-bólico (aquilo que separa) e do sim-bólico (aquilo que une). Quem vai
triunfar São Jorge ou o dragão? A luz ou a sombra? A nossa melhor parte ou a
nossa parte pior? Ambas coexistem e sentimos a sua presença em cada momento: às
vezes na forma e raiva ou de amor ou de violência ou de bondade e assim por
diante.
É aqui que entra a importância de uma identidade forte, de um eu vigoroso, um
São Jorge, que possa enfrentar as nossas sombras e maldades, o dragão, e fazer
triunfar nossa parte melhor.
Sabemos que o caminho da evolução leva a
humanidade do inconsciente para o consciente, da fusão cósmica com o Todo para
a emergência da autonomia do eu livre e forte. Essa passagem é sempre dramática,
tem que ser levada avante ao largo de toda a vida, porque os mecanismos que
querem manter cativo eu e impedir a emergência de nossa identidade
permanentemente estão ativos. E é preciso esforço e coragem para libertar o eu
e conquistar a própria identidade e também a liberdade pessoal.
São Jorge é o que nos mostra como, nessa
luta, podemos ser guerreiros e vencedores. Ele enfrentou o dragão: mostra a
força do eu, da própria identidade, garantindo a vitória.
Mas esta vitória não se
conquista uma vez por todas. Ela tem que ser renovada a cada momento, na medida
em que as amarras vão surgindo. Dai a importância uma ligação com São
Jorge, como uma fonte de energia e de força, capaz de nos assistir na luta até
alcançar a vitória.
Há, contudo, um drama do qual não nos
podemos furtar. Não se trata de um defeito de construção. Mas é uma marca da
nossa existência no espaço e no tempo. Por mais que lutemos e vençamos, o
dragão está sempre aí nos espreitando. Ele nos acompanha. Mas ainda: é uma
parte de nós mesmos, de nosso lado obscuro, mesquinho, menor que nos impede de
sermos plenamente humanos. Mas também somos acompanhados por São Jorge que nos
assiste na luta.
Por esta razão, nas muitas lendas
existentes sobre São Jorge ele não mata o dragão, mas o vence mantendo-o
domesticado, amarrado e submetido aos imperativos do eu e da identidade
pessoal. Ele não pode ser negado e eliminado, apenas integrado de tal forma que
perca seu lado ameaçador e destruidor. Pode até nos ajudar a sermos humildes e
evitarmos a demasiada autoconfiança. Dai a vigilância e a referência a São
Jorge que não só compensa a nossa falta de energia, mas nos pode valer
poderosamente.
É interessante observar que em algumas representações,
especialmente uma famosa de Barcelona (é seu patrono da Catalunha), o dragão
aparece envolvendo todo o corpo de São Jorge. Numa gravura de Rogério
Fernandes, artista brasileiro, o dragão aparece envolvendo o corpo de São
Jorge; este o segura pelo braço colocando o rosto do dragão, nada ameaçador, na
altura de seu rosto. É um dragão humanizado, formando uma unidade com São
Jorge.
Noutras (no Google há 25 páginas de
gravuras de São Jorge com o dragão) o dragão aparece como um animal manso sobre
o qual São Jorge de pé o conduz, sereno, não com a lança pontiaguda mas com um
bastão.
A pessoa que não renega o dragão, mas o
mantem sob seu domínio conseque uma síntese feliz dos opostos presentes em sua
vida. Deixa de se sentir dividido; encontrou a justa medida pois alcançou a
harmonização do eu e de sua identidade luminosa com o dragão sombrio, o
equilíbrio dinâmico do consciente com o inconsciente, da luz com a sombra,
da razão com a paixão, do racional com o simbólico, da ciência com a arte
e da arte com a religião. Esta pessoa emerge como um ser humano mais rico, mais
sereno, mais compreensivo, tolerante e compassivo, irradiando uma aura boa ao
seu redor.
A confrontação com as oposições, do dragão
com o São Jorge, e a busca da síntese, constitui a característica de personalidades
exemplares que encontramos tantas por ai. Tais são figuras de Gandhi, de Luther
King Jr. de Dom Helder e, parece também, do atual Papa Francisco.
Repetimos: importa reconhecer que o dragão
amedrontador e o cavaleiro heroico São Jorge são duas dimensões de nós mesmos.
Nosso desafio é fazer que São Jorge tenha a primazia e não deixe que o
dragão nos derrote e tire o sentido e o gosto de viver.
Muitos brasileiros, especialmente, os cariocas tem grande veneração por São
Jorge; ela é tão forte quanto a de São Sebastião, patrono oficial da cidade.
Mas este possuui um inconveniente: é um guerreiro, cheio de flechas, portanto
“vencido”. O povo sente a necessidade de um santo guerreiro corajoso
“vencedor”. Ai São Jorge representa o santo ideal. Na novela “Salve Jorge” ele
é o herói que salva as mulheres traficadas contra o dragão do tráfico
internacional de mulheres.
Por fim cabe uma observação de ordem
filosófica: seguramente aqueles que veneram São Jorge não saibam nada disso que
explanei acima acerca da coexistência dos dois em nossa vida. Nem precisam
saber. Basta que tenham consciência de que a vida é uma permanente luta entre o
que é bom para mim e para os outros e entre o que é mau que deve ser evitado e
combatido. E acreditar que a virtude é preferível ao vício e que a palavra
final terá São Jorge e não o dragão.
Nessa fé saímos todos fortalecidos para
os embates que ocorrerão pela vida afora com a assistência ponderosa do
guerreiro vencedor São Jorge.
Leonardo Boff é teólogo,
filósofo, pesquisador e escritor.
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