Por LEONARDO BOFF

Esta visão
exaltatória favoreceu a construção de uma Igreja monárquica, poderosa e rica
mas absolutamente secularizada, contrária a tudo o que é evangélico. Tal
realidade só podia provocar uma reação contrária entre o povo. Surgiram os
movimentos pauperistas, de pobres e de leigos ricos que se faziam pobres. Por
sua conta pregavam o evangelho na língua popular: o evangelho da pobreza contra
o fausto das cortes, da simplicidade radical contra a sofisticação dos
palácios, da adoração do Cristo de Belém e da Crucificação contra a exaltação
do Cristo Rei todo poderoso. Eram os albigentes, os valdenses, os pobres de
Lyon, o seguidores de Francisco, de Domingos e dos sete Servos de Maria de
Florença, nobres que se fizeram mendicantes.
Apesar deste
fausto, Inocêncio III foi sensível a Francisco e aos doze companheiros que o
visitaram, esfarrapados, em seu palácio em Roma, pedindo licença para viverem
segundo o Evangelho. Comovido e com remorsos, o Papa lhes concedeu uma licença
oral. Corria o ano 1209. Francisco nunca esquecerá este gesto generoso do Papa
imperial.
Mas a
história dá as suas voltas. O que é verdadeiro e imperativo, chegado o momento
de sua maturação, se revela com uma força vulcânica. Tal se revelou em
1216 em Perúgia para onde fora o Papa Inocêncio III a um de seus palácios.
Eis que ele
morre subitamente, depois de 18 anos de pontificado triunfante. Logo sons
lúgubres de canto gregoriano se fazem ouvir, vindos da catedral pontifícia.
Executa-se o grave planctum super Innocentium (“o pranto sobre Inocêncio”).
Mas nada
detém a morte, senhora de todas as vaidades, de toda a pompa, de toda glória e
de todo o triunfo. O esquife do Papa jaz à frente do altar-mr: coberto de
ouropéis, joias, ouro, prata e os signos do duplo poder sagrado e secular.
Cardeais, imperadores, príncipes, abades, lomgasfilas de fiéis se sucedem na
vigília. É o bispo Jacques de Vitry vindo de Namur e depois feito Cardeal de
Frascati que o conta.
É
meia-noite. Todos se retiram pesarosos. Apenas o bruxulear das velas
acesas projetam fantasmas nas paredes. O Papa, outrora, sempre cercado por
nobres, está agora só com as trevas. Eis que ladrões penetram sorrateiramente
na catedral. Em poucos minutos espoliam seu cadáver de todas as vestes
preciosas, do ouro, da prata e das insígnias papais.
Aí jaz um
corpo desnudo, já quase em decomposição. Realiza-se o que Inocêncio deixara
exarado num famoso texto sobre “a miséria da condição humana”. Agora ela é
demonstrada com toda a sua crueza em sua própria condição.
Um
pobrezinho, fétido e miserável, se escondera num canto escuro da catedral para
vigiar, rezar e passar a noite junto ao Papa que lhe aprovara seu modo de vida
pobre. Ele tirou a túnica rota e suja, túnica de penitência. E com ela
cobriu as vergonhas do cadáver violado.Era Francisco de Assis.
Sinistro
destino da riqueza, grandiosidade do gesto da pobreza. A primeira não o
salvou do saque, a segunda o salvou da vergonha.
Concluíu o
Cardeal Jacques de Vitry: ”Entrei na igreja e me dei conta, com plena fé,
quanto é breve a glória enganadora deste mundo”
Aquele que
todos chamavam de Poverello e de Fratello nada disse nem pensou. Apenas fez.
Ficou nu para cobrir o nu do Papa que um dia mostrou compreensão por sua
decisão de viver segundo o evangelho da pobreza radical. Esse Francisco de
Assis emerge como fonte inspiradora de Francisco de Roma,o bispo da cidade e
Papa.
Leonardo Boff é autor do livro Francisco de Assis:
ternura e vigor (Vozes) 1999.
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