Por
JURACY ANDRADE

Martinho
Lutero foi um grande reformador e a ele se deve a quebra do monopólio do
catolicismo e do papado no Ocidente. Mas acredito que ele cometeu um erro
básico ao pregar o livre exame dos textos sacros da Bíblia. Inconformado com a
interpretação exclusiva que se arrogavam os donos da Igreja Romana (que, aliás,
não encorajavam os fieis a ler os textos sagrados), ele partiu para o extremo
oposto. Fez tábula rasa da tradição apostólica. Segundo Alister McGrath, em sua
obra A revolução protestante (Editora
Palavra), a ideia, no cerne da Reforma do século 16, é que a Bíblia pode ser
entendida por todos os cristãos e que todos eles têm o direito de interpretá-la
e de insistir que suas percepções sejam levadas a sério. Mas essa afirmação de
democracia espiritual acabou por liberar forças que ameaçavam desestabilizar a
Igreja, levando à cisão e à formação de grupos dissidentes. Isso se provou incontrolável,
conforme esse autor.
Ele
prossegue se indagando: quem tem autoridade para definir a fé da religião? instituições ou os indivíduos? Quem tem o
direito de interpretar seu documento fundamental, a Bíblia? E prossegue: “A
erupção da Guerra dos Camponeses, em 1525, deixou perfeitamente claro para
Lutero que essa nova abordagem era perigosa e, em última instância,
incontrolável. Se cada indivíduo pudesse interpretar a Bíblia conforme sua
vontade, o resultado só poderia ser a anarquia e o individualismo religioso
radical. Tarde demais. Lutero tentou controlar o movimento, enfatizando a
importância dos líderes religiosos autorizados, como ele mesmo, e das
instituições na interpretação da Bíblia. Mas quem, perguntavam seus críticos,
havia ‘autorizado’ essas chamadas autoridades?”
Essa
livre interpretação radical levou a aberrações como você deixar morrer um filho
porque a transfusão de sangue é proibida. Como já levara a Igreja pré-Reforma a
monstruosidades como as Cruzadas e a Inquisição. Mas essa introdução é para
chegarmos à “bancada evangélica” que pretendem constituir no Congresso Nacional
68 deputados e três senadores de diversas denominações protestantes (partidos
são apenas biombos para eles), como Assembleia de Deus, Batista, Presbiteriana,
Universal Quadrangular, Internacional e outras digamos “menos votadas”. Toda
pessoa tem direito de professar sua religião e felizmente isso já é hoje
bastante respeitado em nosso país. Mas, num Estado pretensamente laico, o cara
não pode se apresentar ao eleitorado como candidato porque pertence a tal
religião, porque é pastor ou adepto de tal igreja, porque faz suas orações na
sinagoga, na mesquita etc.
Essa
vinculação político-religiosa foi expressamente combatida por Jesus Cristo,
cuja paixão, morte e ressurreição estamos celebrando neste final de março. Nos
primeiros três séculos de prática cristã, essa novidade (pois a praxe eram
religiões tribais ou estatais) foi respeitada. Mas tudo foi melado quando o
imperador romano Constantino, preocupado com a decadência do Império Romano,
resolveu cooptar o cristianismo e dele fazer a religião oficial dos seus
domínios. Foi o que de pior poderia acontecer à pureza e novidade do
cristianismo. Bispos se tornaram nobres do Império e faziam parte da corte
imperial. E, finalmente, o bispo de Roma decidiu, face à transferência da sede
do Império para Constantinopla, ser o novo imperador criando a instituição do
papado, que nada tem com o Evangelho e a tradição.
O
livre exame radical leva uma pessoa como Edir Macedo a se proclamar bispo,
dizer-se inspirado por uma revelação (ver na sua biografia oficial) e pregar
uma estranha teologia da prosperidade. Mas o radicalismo não é privilégio das
confissões protestantes (que hoje preferem se dizer evangélicas; um duvidoso
monopólio). Apesar de na contramão da lei, escolas públicas obrigam alunos a
orar e cantar músicas católicas e a um compulsório ensino religioso (que, na
verdade, é facultativo). Será que não se percebe que um Estado realmente laico
é o melhor para qualquer religião ou espiritualidade?
PS
– Salve o papa Francisco, que fala e age como cristão. Se ele fizer uma limpeza
na imundície da Cúria Romana, será um início de caminho para a volta ao
cristianismo dos Atos dos Apóstolos.
Acredito em Pérez Esquivel, combatente antiditadura, o qual garante que o então
cardeal Bergoglio (hoje papa Francisco) não entregou ninguém aos gorilas
argentinos.
Juracy Andrade é jornalista, com formação em
filosofia e teologia
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