Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
O fim da semana passada terminou assombrado com a noticia da morte do grande
Elie Wiesel, aos 87 anos, em Nova York. Mencionado e homenageado por
autoridades políticas, sociais e religiosas no mundo inteiro, Wiesel
notabilizou-se como guardião de uma ética que repousa sobre o princípio simples
de não esquecer, sempre recordar, para jamais repetir.
Por sua atividade incansável nesta memória que é
guardiã da vida e garantia do futuro, ganhou o prêmio Nobel da Paz em 1986, pelo conjunto de sua obra de 57 livros,
dedicada a resgatar a memória da Shoa (o holocausto nazista) e a defender
outros grupos vítimas das perseguições, por
tudo o que fez para construir a paz dinâmica e ativa da memória do
Holocausto. Todas as suas forças enquanto sobrevivente da Segunda Guerra
Mundial foram empregadas na denúncia e rememoração do maior genocídio do século
XX e talvez mesmo de toda a história da humanidade.
O menino romeno, único filho homem de Shlomon
Wiesel, foi arrancado aos 15 anos da inocência da primeira juventude em
1944. Educado em uma fé e uma piedade profundas que o fazia cantar
salmos e levantar-se à noite para louvar o Deus de Israel, esse menino teve que
ver sua família e milhões de outros mais sofrerem os horrores do nazismo. Levado
juntamente com os seus para o temível campo de extermínio de
Auschwitz-Bierkenau, Wiesel passou a ter como identidade a tatuagem
identificatória A-7713.
Com este número inscrito para sempre em seu corpo,
viveu a rotina desesperadora de Auschwitz e depois de Buchenwald, de onde
foi resgatado pelas forças aliadas, em abril de 1945. Após sua
libertação, Wiesel viveu na França como apátrida e, embora escrevesse textos e
fizesse traduções para publicações judaico-francesas, jurou não escrever sobre
suas experiências em Auschwitz-Birkenau porque duvidava de sua capacidade de
transmitir adequadamente aquele horror.
O silêncio auto-imposto de Wiesel chegou ao fim na
metade da década de 1950, quando entrevistou o então vencedor do Prêmio Nobel
de Literatura, o grande romancista francês católico François Mauriac.
Profundamente comovido pela história de Wiesel, Mauriac insistiu para que ele
contasse ao mundo suas experiências e "prestasse testemunho" em nome
das milhões de pessoas que tinham sido silenciadas.
O resultado foi o livro A Noite, a
história de um adolescente que sobreviveu aos campos e era diariamente
torturado interiormente ao ver que o Deus que ele outrora adorara tinha
permitido que seu povo fosse destruído. Ele relata os horrores de crianças
sendo queimadas em fornos coletivos, prisioneiros sendo enforcados diante de
todo o campo para servir de exemplo e outras crueldades. No final do
livro, descreve o momento em que conseguiu emergir - já no hospital para onde
foi levado, - do estado de fraqueza absoluta em que se encontrava.
Segundo ele, o que viu no espelho do hospital foi um cadáver que o olhava e
interpelava. O preso A-7713 recebia ali sua missão de jamais consentir no
esquecimento do que havia vivido. O olhar daquele cadáver de si próprio nunca o
abandonou.
Ao receber o Nobel da Paz, Wiesel declarou, em
discurso emocionado, ter certeza de não merecer aquele prêmio como algo
concedido apenas a sua pessoa. “Essa honra pertence a todos os sobreviventes e
seus filhos e, através de nós, ao povo judeu, cujo destino eu sempre me
senti identificado”, afirmou.
As homenagens que lhe foram dedicadas após sua
morte foram inúmeras. Chefes de estado como o presidente dos EUA, Barack
Obama, o presidente francês, François Hollande, a chanceler alemã, Angela
Merkel, e o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, exaltaram sua estatura
ética e suas qualidades de humanista.
Existe, porém, uma antiga lenda talmúdica que
menciona a existência dos Tzadik, 36 Justos que salvam o mundo a cada geração.
A lenda afirma que ninguém os conhece e eles próprios ignoram que é a presença
deles que mantém a Criação em vida. Podemos arriscar uma hipótese: se
Eliezer Wiesel, o menino que conheceu a noite da fé e do espírito humano aos 15
anos e a ela sobreviveu para ser guardião da memória do genocídio de seu povo,
não seria um desses justos, esses Tzadik.
Podemos, sem dúvida, afirmar que ele foi e
permanecerá para sempre como testemunha assombrada pela memória indignada pela
injustiça, um ser humano que sempre lutou para que o mal que viveu não seja
esquecido e não se repita no futuro. Shalom Aleichem.
Professora
do Departamento de Teologia da PUC-RJ, a
teóloga é autora de Teologia e
literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)
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