Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
E agora foi a Festa Nacional Francesa: o 14 Juillet, a Queda da Bastilha em
1789, inicio da Revolução Francesa. Em Paris havia arquibancadas no
Champs Elysées para o desfile. Em todas as cidades do país,
comemorações. Em Nice, na tradicional Promenade des Anglais, os fogos de
artifício, programa das famílias, havia terminado e todos voltavam tranquilos
para casa, quando irrompeu o caminhão dirigido por Mohamed Lahouaiej Bouhlel, em velocidade furiosa por
mais de dois quilômetros.
E a festa cívica
transformou-se em uma quantidade impressionante de corpos mutilados, muitos
deles de crianças. Os feridos foram levados aos hospitais e os parentes
iniciaram a via dolorosa para encontrá-los ou pelo menos saber notícias.
Crianças gritavam desesperadas, perdidas de seus pais. Um carro de bebê
foi encontrado e resgatado por uma senhora, e os pais conseguiram encontrar o
filho perdido no pânico. Os habitantes da cidade abriam as portas para
acolher os que fugiam desesperados.
O mundo soube horas
depois. As vítimas começaram a ser identificadas e as autoridades a se
pronunciarem. E o Estado Islâmico a reconhecer a autoria. Todos nós,
observando, tínhamos a estranha sensação de já haver visto este filme, estas
cenas, este enredo de horror. Assim foi em Paris em novembro de 2015. Em
Bruxelas, no metrô, poucos meses depois, e na redação do Charlie Hebdo, em
janeiro de 2015. E etc etc etc.
Sempre a sensação do
susto, da surpresa nefasta, do lugar escolhido a dedo para ter força simbólica,
em macabra coerência, o terrorismo não quer apenas matar e destruir pessoas
físicas. Quer atingir símbolos, estilo de vida, valores, tudo aquilo que
compõe a identidade cultural de uma nação. Não mata apenas homens e
mulheres, mas atinge em cheio a liberdade de expressão, o lazer, o prazer de
viver, a participação em uma comemoração lúdica e patriota. Faz-se presente com
seu potencial destruidor ali onde não seria esperado que estivesse, onde não
era esperado, onde não havia por que estar presente.
Por isso, colhe as pessoas
no exercício de sua identidade mais profunda, vivendo seus valores mais
arraigados e queridos, atingindo não só as vidas, mas a forma como as pessoas
escolheram viver suas vidas. É como se dissesse: nada mais de lazer, de
casa de shows, de restaurantes ao ar livre, de festas cívicas com fogos de
artifício.
Como pode uma população
defender-se contra isso? Como, se justamente a estratégia é anular a
capacidade de defesa, embotar a inteligência que procura antecipar-se à ação do
terror, cercear a vigilância que sempre sai ludibriada? Como se nada é
coerente, se nada faz sentido, se tudo é um festival de perplexidades?
Por isso, mesmo é o
terrorismo tão difícil de ser combatido. Em situações como a nossa, na
cidade e no país, a violência também é terrível e altamente mortífera.
Mas há algumas convergências que pelo menos nos permitem gestos e ações de
autoproteção, que se não dão segurança real, pelo menos fazem efeito
psicológico: não levar dinheiro consigo, não caminhar em certos lugares quando
já é noite, não andar na rua e sim no shopping, não saltar do ônibus em lugares
isolados, colocar trava elétrica nos carros para trancá-los.
Porém, o que
acontece na Europa e, sobretudo em certos países como a França, é
diferente. O perigo pode estar em qualquer tempo e espaço. Todo
lugar, toda situação é perigosa. E quando se vê, a vida como um todo é
perigosa e as pessoas passam a viver acuadas, com medo e insegurança
permanentes. As famílias voltam de férias antes da hora porque houve
atentados. E os que não voltam não conseguem mais aproveitar as
férias. Os terraços dos bares já não são cenários de despreocupação e
alegria. Sobre eles pesa o estigma do acontecido em outros terraços, em outros
espaços destinados ao lazer e à alegria de viver.
A lógica do terror é
incompreensível e inassimilável. Porque seu objetivo é o terror mesmo. A
morte é parte do jogo. O que importa é semear a insegurança e o medo, e
transformar o mundo em espaço de perigo. Os desdobramentos de Nice não se sabe
quais serão. Em termos de discursos parecem bem semelhantes aos eventos
anteriores. Será, porém, que as potências ocidentais pretendem assumir
ações efetivas, tais como fazer mudanças nas políticas migratórias, alterar seu
modelo de vida a fim de incluir os que até agora se sentem intrusos e
indesejados? Em nome das vítimas, sobretudo das crianças de cá e de lá,
que tiveram suas vidas e seu futuro roubados, é de se esperar e de se rezar por
um SIM.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da
PUC-RJ. A teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e
segredos compartilhados (Ed. Vozes)
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